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O jumento no Seridó

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Entre um chuvisco e uma chuva e um relâmpago no meio, que ainda não definem uma quadra regular de inverno, como aconteceu no ano passado, o doutor Paulo Bezerra desvia o olhar do horizonte para cuidar de escrever suas cartas. Esta semana me chegou uma dando conta de quando o jumento apareceu no sertão e da enorme e valiosa serventia do muar para o desenvolvimento da região. É uma delícia sentar nessa garupa recontada pelo ilustre missivista:

– Woden, quando o jumento (Equus asinus) chegou ao sertão, significou uma enorme força de progresso e falam da entrada dele, no chão do Seridó, num prazo dilatado de trinta anos que vai de 1840  a 1870. Com a cruz nas costas e o casco duro e resistente a ponto de nunca estropiar, abriu veredas, carregou feira, levantou açude, transportou xiquexique, levou cangalha e sela, multiplicou a raça e deu origem ao híbrido burro(a)-mulo(a) – (Equius asinus caballo), outra peça importante no desenvolvimento do sertão. Por isso que os artesãos de Nova Jerusalém, em Pernambuco, num belo talhe de cantaria, lhe prestaram significativa e justa homenagem em monumento erigido à beira da estrada.

– Na caatinga das Barrentas, terra adquirida de João Raimundo, meu pai criava um magote de jumentas soltas com o “pai do lote”, para produção do valioso animal de trabalho. Terreno de caatinga com muito espinho, jurema e pereiro e, nos anos de chuva, capim panasco que de verde chegava a amarelo-dourado quando seco. Na cacimba, já funda de tanto lhe cavarem o fundo em busca d’água nos repetidos anos de estiagem, era onde os bichos iam matar a sede. Notavam-se muitos rastos nos caminhos e veredas e na praça da cacimba, levando a presumir a presença de animais além dos da fazenda e, como estercavam sempre no mesmo canto, o volume de esterco levava à mesma conclusão. Foi dado um aviso aos vizinhos, sem resultado. Feito um ajuntamento, os de dentro foram entregues a Cornélio do Bico pra lhes dar descaminho, mas na segunda apartação eram poucos os de fora e os donos estavam lá para resgatá-los. Depois disso os limites da terra foram respeitados.

– A maior concentração de jumentos era vista quando se levantava a parede de um açude. Dezenas deles e até centenas… Cada tropa se compunha de quatro a seis jumentos que carregados iam a passo curto, gemendo com o peso da terra e de volta, parede abaixo e escoteiros, chouteando. Logo se habituavam a andar na mesma trilha, ir ao ponde onde esvaziar as caçambas e voltar ao mesmo lugar de origem para enchê-las de novo, sempre na mesma ordem. A ração principal era o milho posto de molho de véspera pra amolecer, servido em mochila com um punhado de sal. Tropeiros chegavam de longe para o trabalho que principiava cedo, tinha uma pausa ao meio dia e se encerrava quando o sol ia se escondendo no poente. Fichas de zinco gravadas com o valor unitário de 1, 10, 50, 100 e 500, eram o comprovante das cargas de terra despejadas. Com o feitor da parede, de quem recebia a ficha, o tangedor trocava as fichas menores pelas maiores.

– Além dos jumentos de carga que eram muitos, havia os de sela que eram poços e os de besta, mais escassos ainda. Foi um corisco, num ano seco, que matou o jumento andaluz da sela de seu Antão da Ping’água e, de sangue pega, era o jumento roxo e graúdo dado por Tiburtino Bezerra ao irmão Silvino para cobrir as éguas do seu rebanho. Mas tudo foi passando, sobretudo, depois do abatedouro de Belo Jardim, em Pernambuco, que quase acaba com a raça. As apostas quanto ao número deles à direita ou à esquerda das estradas desapareceram e até a sua presença no “Beco da Troca” das cidades interioranas minguou. Na oportunidade em que um cidadão tecia loas ao seu jerico, por que isso, por que aquilo, um “caboco” bom de verso arrancou do miolo do seu versejar, o repente depreciativo:

“Não eleve esse jumento
Que isso é coisa muito à-toa
No caminho ele se deita
No terreiro ele se ‘acoa’
Apertado na espora
Solta um peido e a merda avoa.”

 – O trator passou a fazer muito do que faziam os jegues. A carroça puxada a boi, que tem força no cangote, substituiu a do jumento, que tem força no espinhaço; os que andavam a cavalo passaram para o caminhão que anda mais ligeiro e pega mais gente e leva para a escola os poucos estudantes da zona rural. As motos se multiplicaram até por atender com mais ligeireza nas necessidades. Aos jegues, porém, continuam reservadas afazeres de grande valia.

– A velha Angélica, uma vitalina contadora de história de Trancoso e mestra em fiar algodão, morreu em consequência da queda de um jumento assim como o meu avô Félix da Pendanga que caiu de Moleque, um jumento preto, em 1937.

– Em Carnaúba dos Dantas, contou-me o Dr. Humberto Dantas, menino bom de lá, houve uma corrida de jegues onde dois eram os favoritos. Logo tomou distância Zé Cabeçote em sua monetária que botou boa dianteira na de Caco de Naninha. Folgado na frente, no entanto, ao passar diante de um grupo de pessoas, um sem vergonha gritou: “Vai Zé Cabeçote, vai!” como a incentivá-lo. Odiando o apelido, riscou o jumento e já se apeou de manga arregaçada, brabo, comendo um galo, grossas as veias do pescoço, investindo contra o povo, furioso: “Qual foi o ‘fela’? Apareça!”. Ninguém se mexeu, mas ele abufelado perdeu a corrida que estava ganha.

– E o rincho deles, amigo velho, como substituir? Aí, não. Aí há de sempre haver um casal procriando para que seus descendentes continuem a rinchar marcando as horas e quebrando o silêncio do sertão seja durante o dia, seja em noites claras de luar, seja em noites escuras que nem breu, daquela se meter dedo no olho.

– E lá no seu mundo chove? No meu chuvisca e, vez por outra, chove. Ronald Gurgel repete que o chão do Seridó é muito bom; o céu é que não presta…”

O burro dos poetas

Jorge Luis Borges também tem o seu jumento, “o asno de três patas”, criação de Zaratustra, que vive no meio do oceano e “que três é o número de seus cascos e seis o de seus olhos  e nove o de suas bocas e dois o de suas orelhas”. Diz ainda que o “âmbar  é o esterco do asno de três patas”. Está escrito em O livro dos seres imaginários.

Outro poeta, o espanhol Juan Ramõn Jiménez, Prêmio Nobel de Literatura de 1956, tinha o jumentinho Platero (Platero e Eu) com quem conversava sobre filosofia, debulhando “reflexões sobre os mistérios da vida e da alma”. E o burro de Sancho Pança, o fiel escudeiro de Dom Quixote, heim? Glória maior só o do jumentinho baixeiro que conduziu Jesus, o filho do Senhor, pelas ladeiras pedregosas de Jerusalém.

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