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O memorialismo veraz de Edson Nery

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Nelson Patriota – Escritor

Verdade existencial e verdade literária se associam no livro “Vão-se os dias e eu fico – memórias e evocações”, de Edson Nery da Fonseca, lançado em fins de 2009 pela editora Ateliê Editorial.

O propósito desse exercício memorialístico do escritor pernambucano foi dar resposta a algumas questões pontuais, do tipo “por que isso, por que não aquilo”, e teve inspiração numa sugestão do espanhol Julián Marías no sentido de que uma vida pode ser mais bem compreendida se observado não o que se fez dela, mas o que se deixou de fazer. Trata-se, poder-se-ia dizer, de uma espécie de “contabilidade existencial”, que costuma ocupar um lugar de importância na vida de um escritor longevo, como é caso do octogenário Edson Nery.

À medida que flui a leitura do livro, o leitor vai se dando conta do quanto o autor deixou para trás a fim de poder seguir a linha-mestra de sua biografia, ou seja, mantendo-se fiel aos valores que construiu para si. Avulta, a esse respeito, a nostalgia da vida monástica que Edson nunca experimentou plenamente por circunstâncias inesperadas e incontornáveis. Vê-se também o quanto lhe custou ter sacrificado essa “vocação perdida” à qual findou por absorver entre as suas “faltas”.

Em compensação, são múltiplas as realizações no campo da biblioteconomia, da crítica literária e da boa convivência, com destaque para o trabalho junto a pessoas como Álvaro Lins, Gilberto Freyre e Otto Maria Carpeaux, mestres de eleição de Edson Nery, e que, pelo papel que desempenharam na cultura brasileira, já bastariam para conferir a um relato biográfico um interesse inquestionável.

A esses mestres somaram-se outros nomes não menos emblemáticos, como Darcy Ribeiro, Manuel Bandeira, Anísio Teixeira, Odilon Ribeiro Coutinho, Nelson Pereira dos Santos, os norte-rio-grandenses Nilo Pereira e Câmara Cascudo e outros mais.

A trajetória de Edson Nery rumo às suas grandes realizações no campo da biblioteconomia também é retinta de episódios curiosos, intrigas palacianas, êxitos e uns poucos insucessos, que ninguém é perfeito! Mesmo ante os resultados indesejados, o autor se mantém veraz, como o faz ainda quando aborda a delicada questão da sua homossexualidade, como a dizer que no âmbito de seu testamento intelectual nenhuma verdade poderia faltar, muito menos ser escamoteada.

Nesse que é um dos capítulos mais longos do livro, Edson se permite fazer algumas conjeturas acerca da questão sexual, tema candente de nossos dias, cujas múltiplas vertentes têm gerado intermináveis discussões entre conservadores, liberais, indiferentes (poucos) e apaixonados (inumeráveis).

Aos que defendem ser o homossexualismo uma cândida questão de opção, Edson Nery contrapõe um argumento difícil de rebater: “Não acredito em opção homossexual porque só masoquistas podem optar por uma vida social difícil como a dos que amam pessoas do mesmo sexo, obrigados a esconder como vergonhoso ‘l’amour que n’ose pas dire son nom’”, isto é, “o amor que não ousa dizer seu nome”, e que Edson atribui a Shakespeare e não a Wilde, como às vezes ocorre. Casamento entre pessoas do mesmo sexo e paradas Gay são outras objeções veementes do escritor pernambucano.

A segunda parte do livro, literalmente “Evocações”, é uma espécie de suplemento às memórias, uma vez que traz impressões de Odilon Ribeiro Coutinho e de Álvaro Lins, duas amizades de toda a vida de Edson, além de um comovido retrato da sua mãe e de uma afilhada cercada de mistério, a partir do estratagema fabuloso que origina sua narrativa.

O requinte da prosa de Edson Nery não fica apenas na sua erudição. Sua privilegiada memória, que lhe permite recitar de cor poemas e mais poemas dos mais diversos poetas, inclusive de sua ex-aluna Zila Mamede, exerce um papel fundamental nessas memórias: enseja que, sempre que possível, o autor recorra a versos de Drummond, Bandeira, Schmidt, Ascenso Ferreira, Cassiano Nunes, entre muitos outros, para exprimir uma determinada ideia, esclarecer determinado pensamento. A igual uso literário se prestam frases de Gilberty Freyre, outra de suas paixões intelectuais.

Com isso, verdade de vida e verdade da arte dão-se as mãos na ciranda dançada sobre a “Pont Mirabeau” (não “Point Mirabeau”), de Guillaume Apollinaire que, a certa altura, canta: “les jours s’en vont, je demeure” (“Vão-se os dias e eu fico”).

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