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“O mundo está em metamorfose”

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Passos tranquilos, voz pausada. Horário marcado e logo ele se apresenta.
Mostra-se empolgado com os projetos de incentivo a leitura e durante
toda essa entrevista cita por diversas vezes a palavra metamorfose. O
escritor Affonso Romano de Santanna, autor consagrado, acredita que o
momento vivido hoje é de transformação. A dúvida é saber se será para
corrigir os erros ou enveredar na somatização deles.
Ele aposta, claro, na correção dos erros e em um novo e promissor
momento, mas chama atenção para a importância de “ler o mundo”. “Minha
preocupação enquanto escritor, enquanto intelectual é que esses 30
milhões de brasileiros (que passaram a integrar a classe média) não
sejam consumidos pela sociedade de consumo, não sejam simplesmente
consumidores, que eles passem a ser cidadãos. Você só passa a ser
indivíduo se você souber ler”, destaca o escritor que esteve em Natal a
convite do Instituo de Desenvolvimento da Educação para o Seminário
Prazer em Ler. O escritor cita que há no Brasil hoje 12 mil programas de
incentivo a leitura e avalia como um saudável movimento da própria
sociedade civil. “É uma resposta que a sociedade civil está dando da
urgência de se estabelecer o trabalho. Na favela do Alemão tem um menino
favelado que construiu uma biblioteca”, ressalta.
Na análise do escritor, a metamorfose é conseqüência de uma grande
crise, que atinge todos os envolvidos com a escrita. Ele observa que as
transformações atingiram a língua, mas alerta que é preciso ter regras,
caso contrário as pessoas serão vítimas da incompreensão. “A língua está
em metamorfose, por outro lado é patrimônio comum e precisa ter regras.
Um dos equívocos é achar que cada um faz a sua língua. Se cada um fizer
sua língua ninguém mais vai se comunicar, daí a necessidade da
organização social. É função do professor, do escritor, do jornalista,
eles são mediadores”, destaca. O convidado de hoje do 3 por 4 é um
intelectual reconhecido internacionalmente, um homem de grandes
reflexões, um cidadão que enaltece e se preocupa com a me-tamorfose do
mundo da escrita.
Com vocês, Affonso Romano de Santanna.
Affonso não se furta a comentar o momento de mudanças pela qual o mundo está passando
O senhor chegou a dizer em um dos seus
artigos que a escrita é a mesma de 4 mil anos atrás. O que o senhor quis
afirmar com essa constatação?

O que eu quis dizer foi que a escrita tem uns 4 mil anos. As leis da
biblioteconomia que havia na Babi-lônia continuam as mesmas da
Bi-blioteconomia hoje. Ou seja, as bi-bliotecas de tabuinhas, que foram
encontradas na cidade história chamada Ebla, a maneira de localizar os
livros nas estantes é mais ou menos a mesma. O que está havendo é uma
diversificação no modo de ler. Costumo dizer que é uma metamorfose. A
escrita nasceu visual; a escrita nas grutas onde o homem primitivo
desenhava figuras. O avançar para o alfabeto levou tempo. O alfabeto só
foi descoberto pelos fenícios 1.500 anos Antes de Cristo. Agora do
visual passou para o abstrato da letra e a nossa sociedade atual está
voltando para o visual.

Em que o senhor baseia esse “re-torno da sociedade para o visual”?
Veja a publicidade. Uma cidade como Natal e o tempo todo você é chamado
para ver anúncios, ver imagens nas bancas de jornal, na internet, na
televisão. Ao contrário do jornal tradicional que é estático, a internet
joga cinemas, anúncios que mexem, dá uma dinâmica visual que é a
recuperação da imagem. E o grande problema hoje é exatamente esse: como
essa recuperação da imagem vai andar junto com o texto escrito?

O retorno para o visual aliado a
metamorfose que o senhor observa e ainda destacando o baixo índice de
leitura, não é motivo de preocupação ?

O que me preocupa hoje é o que tenho discutido muito, é que por causa da
globalização o Brasil está sendo invadido por um tipo de progresso e
por uma sociedade global que tem consequencias. 30 milhões de pessoas
saíram do inexistente para classe C.  Minha preocupação enquanto
escritor, enquanto intelectual é que esses 30 milhões não sejam
consumidos pela sociedade de consumo, não sejam simplesmente
consumidores, que eles passem a ser cidadãos. Você só passa a ser
indivíduo se você souber ler. Ler no sentido de ler e interpretar.
Lancei o livro “Ler o mundo” e a coisa central é essa. Nós temos que
aprender a ler o mundo, a resignificar as coisas, resignificar a
sociedade visual, resignificar a escrita. No mundo onde todos estão em
crise, o editor está em crise, o dono do jornal está em crise, o dono de
televisão está em crise, o veículo de publicidade está em crise,
livraria está em crise, escritor está em crise. Todas as pessoas ligadas
à escrita estão em crise no sentido que acho positivo, o sentido de
metamorfose. O livro está virando uma outra coisa, vai continuar o livro
escrito sempre, mas tem o ipad, tem o ebook. As livrarias passam por
modificação, as editoras estão passando. Todo o mundo está em processo
de metamorfose. Isso é maravilhoso e, ao mesmo tempo, é assustador
porque podemos tomar um caminho desastroso ou fazer certas correções.
Vou lhe dar um exemplo simples: o Brasil não conseguiu em 500 anos e só
agora com esse governo está conseguindo colocar uma biblioteca em cada
município. Quando qualquer país civilizado tem uma biblioteca não só em
cada cidade, como em cada quarteirão. Minha pergunta é: o que o tablet,
telefone celular e computador podem fazer para compensar 500 anos de
atraso? Ou seja, qualquer indivíduo no interior do Rio Grande do Norte,
na Amazônia ou no Nepal pode baixar do seu celular, do seu computador,
os clássicos do pensamento ocidental e oriental de graça na hora que ele
quiser, de Dostoievski a Machado de Assis, a Adam Smith, está tudo de
graça na internet. É necessário que surja o personagem, que está
surgindo, que é o chamado mediador de leitura, que é o sujeito que vai
ensinar as pessoas a lerem de novo. O governo tem uma série de projetos
nessa área que estão dando certo.

O senhor disse que a metamorfose pode ser desastrosa ou corrigir erros. O senhor aposta que ela fará qual dos dois efeitos?
Estou torcendo para corrigir os erros. Quando assumi a Biblioteca
Nacional em 1990 dos 6 mil municípios brasileiros só 3 mil tinham
biblioteca. Começamos a campanha uma biblioteca em cada município e só
agora se conseguiu. Como o Brasil está sendo obrigado a virar um país de
primeiro mundo, sendo obrigado a crescer, a tomar um lugar
internacional, isso significa ser adulto econômica e politicamente,
exige uma contraparte. Você só vira um país adulto política, econômica e
socialmente se produzir uma sociedade de leitores. Não é alfabetizado.
Alfabetizado é para começar, o que estou falando é leitor. Toda vez que
chego numa cidade pergunto quantas livrarias há, quantas bibliotecas.
Perguntei aqui em Natal. Me disseram que tem livraria que funciona. Mas
estive em Maceió e me disseram “livraria aqui nunca deu certo”. Como uma
cidade de 1 milhão de habitantes, capital de um Estado, livraria nunca
deu certo? Outro detalhe, como pode um país como esse ter só 2.900
livrarias? Como podem as livrarias estarem todas concentradas na zona
Sul? Por isso que eu quero que o ipad, o computador, a revolução
eletrônica compense no Brasil o fracasso da revolução industrial e o
fracasso da corrida do ouro.

O senhor disse, logo no início dessa
entrevista, que as pessoas precisam “saber ler o mundo”. O que é preciso
para “ler o mundo”?

Primeiro a ideia de que a leitura é uma tecnologia. Ao contrário do que
dizem que você tem que ler por prazer, isso acontece as vezes, mas nem
sempre é um prazer. Você precisa estudar, por isso que chama deveres
para casa. Ginástica é prazerosa quando você começa a fazer e gosta
daquilo, mas no princípio é duro. A leitura é a mesma coisa. As pessoas
que começam a ler e precisam da leitura para desenvolver suas
habilidades estão desenvolvendo tecnologia. Os países desenvolvidos
trouxeram a tecnologia de ler. Vou lhe dar um exemplo, quando fui
presidente da Biblioteca Nacional fui a um congresso na Índia. Em um
jantar na casa do embaixador americano me disseram que os EUA mantinham
na Índia 110 funcionários para recolherem material escrito nas 25
línguas que existem na Índia. Recolher material e mandar para a
biblioteca de Washington. Isso explica porque os Estados Unidos é dono
do mundo. Isso é informação, informação é dinheiro. Outro exemplo,
quando dirigi a Biblio-teca Nacional um dia me disseram que a Embaixada
americana havia enviado dezenas de caixotes e perguntava se a biblioteca
aceitava a doação. Quando fui ver o que tinha dentro estavam todos os
folhetos que o serviços de Inteligência da Embaixada americana
recolheram nos anos 50 e 60 no Brasil.Todos os manifestos de estudante,
qualquer bobagem ou qualquer coisa séria, eles haviam recolhido e levado
para os EUA, fotografaram e estavam devolvendo o original Isso
significa ler o mundo e colher informação.


Em um artigo o senhor afirmou que
“escrever dezenas de livros não quer dizer nada, porque Cristo e
Sócrates não escreveram nada e mudaram o mundo”. Então o que é preciso
para mudar o mundo?

Acho que as grandes mudanças vieram da palavra. Um discurso do Hitler
mudou a história, um discurso do Churchil mudou a história. Sou a favor
da valorização da palavra. Tanto oral quanto escrita. Uma das perdas da
atual geração, no mundo inteiro, não só no Brasil, é a perda do
discurso. Os jovens não sabem falar, é uma geração desarticulada, não
conseguem fazer uma frase com sujeito, predicado e complemento. Isso diz
respeito a competência discursiva. Ela (a competência discursiva) é
proporcional ao seu êxito de vida, que o digam os camelôs, pastores que
criam igrejas, publicitários.

Por outro lado vemos a internet que parece democratizar a escrita com espaços individuais de blogs. Qual o perigo disso?
A democratização da palavra e da escrita é desejável. A internet
democratizou tudo. Mas aí entra o papel do escritor, o papel dele é
depurar a linguagem. É pegar a linguagem da tribo e retrabalhar a
linguagem. O português é um e depois de Guimarães Rosa. Essa é uma
função do escritor.

Qual a solução para os jovens que não sabem escrever e falam mal?
A língua está em metamorfose, por outro lado é patrimônio comum, mas não
significa que não tenha regras. Um dos equívocos é achar que cada um
faz a sua língua. Se cada um fizer sua língua ninguém mais vai se
comunicar, daí a necessidade da organização social. É função do
professor, do escritor, do jornalista, eles são mediadores.

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