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O olhar essencial

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Maria Betânia Monteiro – repórter

Com a morte do escritor português José Saramago na sexta-feira passada, uma imagem em especial foi bastante difundida, a do escritor segurando uma esfera metálica sobre o olho. O retrato se tornou a tradução de Saramago, assim como o de Albert Einstein estirando a língua se tornou a tradução do físico alemão. Diferente do que é divulgado nos meios eletrônicos, o retrato de Saramago tem autor definido. O sul-mato-grossense, radicado em Natal, Marcelo Buainain foi o responsável pela idéia e execução da fotografia. “A imagem foi além do que eu imaginava”, disse Marcelo.

A leitura de “Ensaio sobre a cegueira” inspirou o fotógrafo radicado em Natal, Marcelo Buainain, a convidar o escritor José Saramago para compor a série Caras e Pessoas, realizada quando viveu em PortugalVestido camisa e bermuda branca, Marcelo Buainain chegou à redação deste jornal ontem pela manhã, pediu para redirecionar o ar-condicionado para o teto e sentou. Com o tempo restrito, já que como disse, agora é um “mestre de obra” na construção de sua própria casa, ele falou que ficou surpreso quando uma amiga ligou para ele e informou que sua foto estava nos principais portais de notícia do mundo.

Marcelo contou que o retrato foi feito dentro de um projeto pessoal, chamado Caras e Pessoas. O projeto consistia em fazer retratos de personalidades portuguesas em duas versões, na ótica normal e inusitada. O convite ao escritor surgiu depois que Marcelo leu “Ensaio sobre a Cegueira”. “Talvez pelo fato de ser fotógrafo, trabalhar com os olhos, depender da visão, a obra tenha me tocado profundamente”, disse Marcelo. Ele conta que elaborou uma lista de personalidades para serem fotografadas durante o projeto e desde o momento que José Saramago ganhou lugar dentre as celebridades, definiu que o trabalho deveria fazer uma alusão aos olhos.

O contato do fotógrafo com o escritor durou pouco tempo. Marcelo pegou Saramago em sua casa, na cidade de Lisboa. Eles entraram no carro e se dirigiram ao estúdio montado na casa de uma amiga em comum, a jornalista Cristina Duran. No caminho eles trocaram poucas palavras, a maioria sobre a amiga Cristina. Marcelo aproveitou o percurso para explicar a idéia de destacar o olho de Saramago no retrato. Chegando ao estúdio foram feitas as fotos. Segundo Marcelo, a esfera metálica que aparece na foto era oriental, usada para fazer massagem nas mãos. Foi o único objeto que o fotógrafo tinha ao seu alcance. “Ele se submeteu a tudo que eu pedi, sem questionar nada”, disse Marcelo, que capturou além da imagem, os traços da personalidade daquele que foi um dos grandes homens e dos grandes escritores deste planeta. “Saramago era uma pessoa muito receptiva e reservada, com uma boa dose de humildade”, contou o fotógrafo. Ele diz que, ao contrário de Saramago, a cantora de Fado Amália Rodrigues não consentiu que fosse feita o retrato inusitado. “Eu queria colocar uma venda em sua boca. Ela não permitiu e ainda fez uma oração”, disse. 

Uma carta endereçada a Saramago, que nunca chegou

O projeto Caras e Pessoas foi concebido depois que Marcelo, na época morando em Portugal, passou a rejeitar o padrão da fotografia, infectada pelo que chama de “normose” –  a doença da normalidade. Junto com o amigo Pedro Paixão, Marcelo elaborou a lista de 40 pessoas que representavam o perfil da sociedade portuguesa. Além de José Saramago foram fotografados o então presidente de Portugal, Mário Soares, a atriz Eunice Munhoz, o ator o ator Joaquim de Almeida dentre outros. As fotografias foram realizadas em películas em preto e branco de 6 x 6 milímetros.

O resultado da sessão fotográfica, com um conjunto de fotografias e uma carta seriam entregues por Marcelo, a José Saramago. Mas o tempo e os projetos do fotógrafo fizeram com que a carta (fechada e endereçada) se tornasse um artigo de gaveta. Marcelo acredita ter ficado com esta dívida, mas ao mesmo tempo, sente que deixou um legado importante para as próximas gerações, que é o retrato (estético e semântico) de José Saramago.

Vizinho e fotógrafo de Manuel de Barros

Marcelo Buainain nasceu em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul e a casa do poeta Manuel de Barros dividia o mesmo muro com a do fotógrafo. Autodidata,  fazia alguns experimentos inclusive com o seu vizinho Manuel de Barros. Um desses experimentos rendeu um retrato onde o poeta segura próximo ao olho, um caramujo – símbolo de sua personalidade retraída. “No fundo eu sempre gostei dessa relação com os olhos, de retratar situações de desconforto”.

Marcelo Buainain se tornou o fotógrafo particular do poeta e sempre que a imprensa nacional e internacional entrevistava Manuel de Barros, Marcelo era convidado para fazer as fotos. “Ele era arredio”, disse.

Fotografia premiada, cinema e casa de praia

Fotógrafo autodidata, Marcelo Buainain largou o quinto ano do curso de medicina, fez vários ensaios fotográficos no pantanal mato-grossense; foi correspondente da extinta revista Manchete, tendo publicado o livro sobre o tema.

Em seguida Marcelo foi para a frança estudar fotografia, mas desistiu no caminho, já que julgava ser a prática bem mais importante que a teoria. Em seguida foi para Portugal, onde ficou praticamente toda a década de 1990, e lá realizou dois grandes projetos. Um de fotografar celebridades – ao lado da jornalista Cristina Duran, onde foram reveladas as imagens de nomes como Wim Wender, Pedro Almodóvar, Bernardo Bertolucci, Irène Jacob entre tantos outros – e outro, ao lado do já citado Pedro Paixão, onde Saramago foi fotografado.

Outro grande projeto de Marcelo foi o realizado na Índia, onde surgiram um livro (“Índia – Quantos Olhos tem uma Alma”) e um prêmio (Prêmio Máximo de Fotografia, atribuído pela segunda bienal internacional de fotografia da cidade de Curitiba).

De Portugal, Marcelo veio para o Rio Grande do Norte, onde fixou residência. Em Natal, o fotógrafo mergulhou no universo audiovisual e produziu seu primeiro documentário, “Do Lodo ao Lotus” e “Hermógenes –  Deus me livre de ser normal”, pelo Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro – Doctv. Atualmente o seu grande projeto é terminar de construir sua casa na praia de Tabatinga.

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