[ médico e escritor ]
A presença da poesia
Numa tarde de solidão quase infinita, a poesia surgiu diante de mim, me pegou pela mão e saímos juntos. Levou-me correndo para as falésias manchadas com vermelho desbotado do anticrespúsculo, e eu percebi claramente que a poesia tinha corpo de mulher, ternura de mulher, magia de mulher. Beijou-me na boca, despiu-se e disse que queria ser amada não como usualmente se ama a poesia, mas como se ama uma mulher cheia de desejos.
A poesia tinha uma cabeleira escura, seios apontando para o infinito e os seus lábios tremiam. Começamos a trocar carícias e eu jamais poderia imaginar que a poesia fosse tão bela, tão deslumbrante, quando se despe totalmente. A poesia me lançou nardos e dardos de doçura, gemeu e os seus gemidos foram tão fortes que, a muitas léguas dali, um homem à beira do suicídio despertou para a vida e escreveu uma ode ao amor. À nossa volta, gaivotas ficaram tontas de ternura, ensaiaram voos acrobáticos e saudaram os amantes nas alvuras e alturas das falésias com seus gritos marinhos. Depois do crepúsculo, a noite demorou a chegar porque a tarde alcoviteira queria ver mais, ver mais. Na despedida depois de tantos embates, desses que ficam gravados na memória como tatuagens, a poesia me disse algo que me deixou preocupado, em alerta. “ Se você continuar preferindo ficar muito triste” – disse ela, num sussurro, numa doce advertência – “eu não o visito mais. Tristeza cansa, meu amado. E logo depois saiu dos meus braços e eu me vi no alto das falésias, a solidão mais maravilhosa que um ser humano pode conhecer. Oito gaivotas pousaram nos meus ombros, me acariciaram com os bicos indiscretos e em seguida levantaram voo, talvez à procura da poesia.
Três anos depois daquela visita, daquele amor sobre as falésias, a poesia voltou. Ela me encontrou sozinho e meio triste, num espetáculo noturno no Teatro Alberto Maranhão. Eu estava nos jardins do teatro e admirava a escultura Arte, de Mathurin Moreau. “Você continua se envolvendo com a tristeza” – ela me repreendeu –, “por isso nunca mais apareci”. E para me alegrar, passou a me jogar dardos e nardos de ternura, brincou de me excitar, fez juras de amor. Dessa vez, quem a pegou pela mão foi eu – e corremos para o motel mais próximo. A poesia não conhecia aquele ambiente, mas gostou da cama que rangia, das cortinas cafonas, do espelho que duplicava nossas carícias. Depois do amor, gritado e sussurrado, prometi não ser mais triste.
Nove meses depois, eu estava sozinho diante do computador. Vinha de leituras tristes e procurava escrever um verso que deflagrasse o poema. E eis que chega o verso inicial: “Imprime a marca dos teus pés / na solidão das falésias”. De plantão à espera de palavras, as horas se passaram e não ocorreu nada. Mas a poesia surgiu, sentou-se no meu colo e começou a escrever, demonstrando muita desenvoltura, Sim, a poesia dos tempos atuais entende tudo de computador. Ela completou o poema, que é uma descrição do nosso encontro no alto das falésias, com as gaivotas circulando em torno do nosso devaneio. Eu quis falar, quis gritar de alegria e espanto, mas a poesia pôs a mão sobre a minha boca. E disse com voz de carícia: “ Tenho pressa vou procurar ouro em cidades antigas, vou ao encontro de uma legião de Netunos”.