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O Rio Doce sofre com a poluição

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Isaac Lira – repórter

Após a curva, a água fica escassa. Perde largura, perde profundidade. Quando se olha para a margem, é possível ver o mato “comer o rio”. Comer. Esse é o verbo que os ribeirinhos usam para definir quando o Rio Doce estreita, fica raso e começa a perder espaço para um espesso matagal. A expressão traz uma meia verdade. Não é o mato que come o rio. Se prestassem atenção nas propriedades, casas e até mesmo na própria relação com o rio, os ribeirinhos diriam com toda certeza: é a cidade quem está comendo o rio.

A degradação do rio doceO Rio Doce faz parte de uma das 14 principais bacias hidrográficas do Rio Grande do Norte, com área de  387,9 quilômetros quadrados distribuídos entre a Lagoa de Extremoz, onde ele nasce, até o estuário do Potengi, no bairro da Redinha para ser mais preciso. Os mais desleixados sabem da sua existência somente ao passar pela avenida João Medeiros Filho e se deparar com alguns bares à beira de um pequeno córrego. Mas na verdade o Rio Doce é o responsável pela produção de hortaliças que abastece Natal, além de ter um papel importante na recarga do estuário no rio Potengi.

O apequenamento do rio, que originalmente já não era um reservatório de água de grande porte, é visível desde o seu nascedouro. Poucos sabem, mas é na ponte da Passagem da Vila, na entrada de Extremoz, que surge o Rio Doce. Por esses últimos dias de dezembro, após um ano carente de chuvas, a nascente do rio tem pouca água e vê-se sem dificuldade o fundo. Latas, garrafas e sacolas plásticas dão a certeza que se trata de um ambiente urbano e, por conseqüência, com altos níveis de poluição. Logo após nascer, o rio ganha uma cerca, característica marcante em toda a sua extensão. Ali, pequenas propriedades rurais praticam a criação de animais, como cavalos e bois.

Mais à frente, o primeiro sinal da degradação a partir das atividades econômicas das populações ribeirinhas. A água do Rio Doce segue por Extremoz, passa pela RN-160 e chega na divisa com Natal através da comunidade conhecida como Gramorezinho, uma das poucas comunidades rurais da capital, com menos de mil habitantes. A principal atividade econômica nessa região é o cultivo de hortaliças e bananas. O Rio Doce é fundamental nesse processo.

Através da rua de terra batida que atravessa a comunidade do Gramorezinho, é possível ver, nas terras ao lado, as hortas que se estendem até o horizonte. Trata-se de tomates, coentros, cebolinhas, além de bananas e também algumas flores cultivadas para a venda na feira. Os agricultores, todos habitantes da comunidade há mais de 10 anos, utilizam a água do Rio Doce para irrigar a plantação de hortaliças. Todos lamentam o assoreamento no rio e a diminuição da qualidade da água. Ao mesmo tempo, utilizam agrotóxicos e fertilizantes na plantação e são, ao mesmo tempo, vítimas e algozes do problema que compartilham.

Em um terreno mais alto, um tanto distante da margem reduzida pelo mato e areia do Rio Doce, Rafael Fernandes, de 38 anos, produz bananas, coentro e tomates. A produção, como a maior parte de tudo que é plantado por ali, acaba na Ceasa, nos supermercados e, por fim, na mesa dos natalenses. Há 20 anos ele trabalha com o cultivo irrigado. Admite usar fertilizante, mas afirma não saber porque o rio tem ficado escasso. “Ele ficou naturalmente assim”, diz, acrescentando que há 10 anos fazia-se uma lagoa ao lado da casa onde mora, em períodos chuvosos.

Hoje, os filhos de Rafael transitam sem problemas pelo rio. “Não dá para cobrir mais nem uma criança direito”, diz. Crianças pulando se misturam com mulheres lavando roupa e pratos. Cavalos e bois também se servem daquela água, antes utilizada   para cozinhar e tomar banho. “Não tem mais como cozinhar com aquela água. Mal dá para a irrigação”, diz Rafael.

No próximo aglomerado urbano, após passar por todas as pequenas propriedades rurais, produtoras de hortaliças, e carregar os agrotóxicos utilizados nas plantações, o Rio Doce passa a servir como um balneário a céu aberto. Para quem frequenta a praia de Genipabu, o Rio Doce escorre por baixo de uma ponte, entre dois bares, onde nos fins de semana juntam-se crianças e adultos já após algumas cervejas para espantar o calor. Nesse ponto, além da poluição invisível dos agrotóxicos, o rio volta a carregar o lixo tão comum das cidades: latas e plásticos. Mais adiante, é possível ver dois pneus à deriva competindo pela correnteza com banhistas.

A última parada do Rio Doce é na Redinha. Lá também há bares, cujos clientes utilizam o rio para tomar banho entre uma cerveja e outra. Tanto na Redinha como em Genipabu, os frequentadores são todos das próprias comunidades. O Rio Doce não atrai turistas.

Contaminação por agrotóxico degrada o rio

A situação observada no Rio Doce, com a contaminação por agrotóxicos, o assoreamento e a presença de lixo urbano em alguns pontos, chamou também a atenção da academia. Desde o fim da década de 90, vários foram os projetos de mestrado e monografias que tratam tanto da degradação ambiental observada quanto a relação das populações ribeirinhas e dos arredores com o rio. Como essas pessoas convivem com o Rio Doce e como essa relação interfere, para além da aparente ausência do poder público, para a continuidade dos problemas?

A mestranda Maria Conceição Oliveira tratou na dissertação “Processos socioambientais relacionados às situações de degradação na região do Rio Doce, Natal-RN” justamente dessa relação. Calcada em entrevistas com a comunidade, a dissertação expõe a relação entre as condições de vida dos habitantes e as situações de desequilíbrio ambiental encontradas ao longo do Rio Doce. Observou-se que a ocupação desordenada, além do uso da terra também sem controle, é um dos principais causadores desse desequilíbrio.

Antes de entrar na argumentação de Maria Conceição Oliveira, é preciso entender o processo de formação dessas comunidades. Na própria dissertação, fica claro que a maioria das pessoas são originárias do interior do Estado. Esse é um ponto importante. É possível pensar essa característica marcante a partir do tradicional processo de saída do interior para a capital à procura de emprego. Ao não encontrar o oásis sonhado, essas populações passam a ocupar as margens da cidade. Todas as áreas urbanas e quase rurais que margeiam o Rio Doce estão localizadas nesses extremos, onde a infraestrutura é insuficiente.

Ao se conversar com os moradores, percebe-se que grande parte das terras foram conseguidas através de posses. É o caso dos terrenos da Comunidade Rio Doce, antigo Sítio Caiana, localizada na Redinha, ao lado da avenida João Medeiros Filho. Por lá, os moradores foram atraídos pelo grande fluxo de veículos e passaram a vender bebidas e quitutes para as pessoas que passavam. Outros passaram a explorar a margem do rio a partir da retirada de areia para a construção civil ou fabricação de argamassa. Esse último processo perdura até hoje, causando grandes problemas e acelerando o assoreamento.

Do outro lado da rio, ainda na Redinha, a expansão da Comunidade da África chegou à Comunidade Rio Doce. Lá, alojados sem infraestrutura,  alguns moradores acabam jogando dejetos e lixo no leito do rio. Comerciantes reclamam. “Acabo perdendo meus clientes porque eles já não podem sequer tomar banho. O rio está sujo”, afirma Antonio Martins, de 59 anos. A dissertação de mestrado mostra ainda a relação entre a falta de esgotamento sanitário e o uso de agrotóxicos com os problemas do rio. Com um detalhe: os próprios moradores, pela falta de infraestrutura e orientação, são as principais vítimas, expostos a riscos de saúde por conta da degradação no Rio Doce.

bate papo – Hermínio Pereira » coordenador de Fiscalização do Idema

A população tem reclamado de problemas ambientais no Rio Doce. O Idema conhece esses problemas?

Estamos fazendo, em conjunto com a 2a. Promotoria de Ceará-Mirim, um levantamento da situação de toda a bacia do Rio Doce. Atualmente já captamos imagens fotográficas de alta resolução e nossos técnicos estão visitando as propriedades para verificar os problemas. Devemos ter ainda seis meses de trabalho para concluir tudo.

Mas do que o Idema já tem certeza?

Grande parte dessas terras são Áreas de Preservação Permanente, numa distância entre 60 metros a 150 metros da margem do rio. Degradar esses ambientes é crime ambiental. O que sabemos com certeza é a devastação das matas ciliares, a vegetação da margem do rio, que causa o assoreamento. No Rio Doce o assoreamento é patente. Além disso, há criação de animais e o uso da água para irrigação.

Esse uso precisa ser disciplinado ou qualquer um pode pegar água?

É disciplinado. A Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos é a responsável. Mas nem todos têm a outorga e os que têm aparentemente não são fiscalizados. Há também barramentos irregulares, mudanças no curso da água.

E a retirada de areia?

É outro problema grave. Temos autuado algumas pessoas. Só nesse ano foram oito pessoas. Mas infelizmente ainda insistem em manter essa atividade não-sustentável.

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