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O sertão revisitado

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Nei Leandro de Castro – Escritor

Numa das vezes que fui a Caicó, o Itans estava tão seco que os pirarucus ficavam presos na lama do seu leito. O calor era de rachar a Catedral de Nossa Senhora de Sant’Ana. As moscas voavam em esquadrilhas e pousavam em tudo. Hoje, o verde se espalha por toda parte. A chuva, além de embelezar o cenário, ainda proporciona um dos maiores prazeres do caicoense de todas as idades: o banho de bica. Esse jorro, que bate com a força de mil cascudos na cabeça do banhista, é um gozo em público, os homens com braços para o ar, grandes risadas, uivos de lobo, massagens pelo corpo inteiro. As freiras da redondeza se trancam em suas clausuras quando a estação dos banhos de bica começa. Bom, como nem tudo é perfeito, as moscas de Caicó continuam a chatear com seus enxames pegajosos.

Mais uma vez fui hospedado por Oberdan e Carla. Fomos ao Itans, que ainda precisa de uns milhões de litros de água, mas já não prende pirarucus na lama. Recentemente, Oberdan, como médico, passou um tempo cuidando do seu anjo da guarda. Esse seu anjo, que é fortíssimo, se meteu entre um criminoso maluco e Oberdan, e terminou sendo alvejado cinco vezes. Cinco tiros de revólver 38, à queima-roupa, cinco tiros desviados pelo anjo da guarda.  Meu cicerone, livre, leve e solto, sem nenhum trauma físico ou psicológico do atentado de um psicopata, me levou por muitos caminhos. Entre outros roteiros, visitamos dona Rosário Vale, que faz um licor de tamarindo como nunca provei igual. Geralmente, os licores caseiros são insuportáveis. Mas esse, fabricado numa casa à rua Padre João Maria, perto do Colégio Santa Teresinha, tem uma qualidade que não fica a dever nada aos licores de marca. 

Essa viagem a Caicó me esclareceu uma dúvida antiqüíssima. Há alguns anos, no Rio de Janeiro, eu fiz uma regressão, orientada por um médico. Foi injetada uma droga nas minhas veias, fiquei inconsciente, e o médico passou a fazer muitas perguntas sobre a minha infância. Na consulta seguinte, ouvi a gravação da entrevista. A minha lembrança mais antiga, captada pelo gravador, datava dos meus dois anos de idade, em Caicó. Eu estava num plano alto e meu pai me mandava pular para um chão onde havia montes de cascas de arroz. Sentia medo, as cascas podiam me encobrir, mas eu pulava e me afundava nelas. Como?  eu perguntava a mim mesmo. Caicó já produziu arroz? Somente agora, recebi o esclarecimento definitivo. Oberdan me informou que perto da atual rua Otávio Lamartine, onde nasci, havia uma empresa que descascava arroz em grandes quantidades. Meu irmão Airton confirma a veracidade da minha mais antiga lembrança. E ele, mais velho que eu, também quase desaparecia nos pulos sobre os misteriosos montes das cascas de arroz. Talvez meu pai quisesse que os seus filhos enfrentassem os perigos desde cedo.

Meu cicerone me guiou também no roteiro lírico de um certo capitão, o que exigiu uma boa dose faro jornalístico. Tudo indica que vou escrever, de parceria com Moacy Cirne, as memórias sentimentais de Caicó, em quatro volumes. Oberdan fará o prefácio e promete um lançamento às margens do Itans, com muita cachaça, carneiro, filé de bode, buchada, peba, carne-de-sol, tucunaré, ovas de curimatã e arroz de leite. Moacy, mais sofisticado, prefere lançar o livro no Baile dos Coroas.

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