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O sossego atraiu novos moradores

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São Miguel do Gostoso é uma miscigenação entre uma pequena cidade nordestina e uma praia paradisíaca que atrai estrangeiros e brasileiros de outras regiões. A chegada cada vez mais frequente destes fez surgir pousadas, bares, restaurantes, o wind e o kitesurf, o jazz e o cinema, mas não apagou a cultura da agricultura, da pesca, o forró, assim como também não impediu a disseminação dos novos ritmos nordestinos, como o bregafunk. A cidade preserva o sossego, não se tornou uma “night life”, como Pipa, mas também não é a mesma de antes.

O cenário paradisíaco despertou o interesse de estrangeiros que nos anos 80 começaram a migrar para São Miguel do Gostoso, a cidade que parece preguiçosa, mas que se desenvolveu nos últimos anos


O cenário paradisíaco despertou o interesse de estrangeiros que nos
anos 80 começaram a migrar para São Miguel do Gostoso, a cidade que
parece preguiçosa, mas que se desenvolveu nos últimos anos

#SAIBAMAIS#Na avenida principal, converso com o seu Luiz, morador de 74 anos que chegou à cidade aos 22, sobre as mudanças recentes. Sossegado na calçada de casa, ele conta os efeitos sentidos na própria vida. Minutos depois, um paredão de som, carregado por um carro, interrompe a conversa, anunciando os shows que haveriam na cidade durante o fim de semana. Paredões de som passaram a fazer parte das cidades nordestinas atuais, presente mais fortemente nas pequenas, e São Miguel do Gostoso não é alheia a isso.

Mais tarde, fui ao centro de kitesurf de Kauli Seadi, três vezes campeão mundial de windsurf e morador da cidade desde 2010, para entrevistá-lo. Kauli havia saído e, enquanto o aguardava, eu observava os estrangeiros de diversos países praticando o kite no mar. Em determinado momento, um jovem vestido de camisa térmica de cor azul, bermuda estampada de praia e boné cruza a faixa de areia a cavalo.

A cena sintetiza a São Miguel do Gostoso de hoje, o contraste entre o nordeste moderno e o paraíso atraente. A diversidade humana convivendo entre os coqueirais, torres de eólicas, bananeiras e pés de maracujá, um céu sem nuvens, praia larga e mar das velas.
De antes
Uma desilusão amorosa na vida de Seu Luiz provocou a mudança dele de Ceará-Mirim para São Miguel do Gostoso em 1972. Não existiam as atrações de hoje, não havia kite, pousada, lugar paradisíaco. Luiz foi porque cansou do lugar onde nasceu e encontrou na casa da irmã um novo lar. Fez a vida em Gostoso e não saiu mais: se casou em 1976, teve filhos e, mais recente, virou ‘artista de cinema’.

Paulinha Miranda, 82, rendeira, nunca saiu de Gostoso


Paulinha Miranda, 82, rendeira, nunca saiu de Gostoso
 Quando chegou na cidade não havia nada. “Você podia andar nu no meio da rua que não tinha quem mexesse com você, não”, brinca. “Nem tinha água, energia, não tinha nada”. Passou a trabalhar no roçado do sítio do cunhado e, aos poucos, viu as coisas mudarem. “Hoje é gente de tudo que é lugar, mas uma coisa é certa: não é uma cidade violenta, não tem briga, é muito difícil ver isso aqui”.

A mudança da cidade também afetou a sua vida. Dois anos atrás, foi convidado a participar de um filme – o qual não lembra o nome. Seu Luiz virou artista de cinema e se viu na tela instalada na praia durante a Mostra de Cinema de Gostoso. Se emocionou. “Todo mundo aplaudiu, nunca tinha imaginado isso. Fiquei segurando um negócio na garganta para não chorar”, relembra.

Na mesma rua onde Luiz mora, a rendeira Paulinha, 82 anos, também tem fama e conta que se em algum lugar do mundo perguntarem quem é “Paulinha Martins”, alguém há de falar que é Paulinha de São Miguel do Gostoso. “Porque só eu faço renda aqui! As mulheres todas sabem fazer, mas ninguém quer mais. Aí só pedem encomenda a mim”, relata.

Luiz Costa, 74, chegou na cidade nos anos 70


Luiz Costa, 74, chegou na cidade nos anos 70
Desde que foi diagnosticada com Alzheimer, Paulinha parou de fazer renda, conta a filha Joelma, mas trabalhou tempo suficiente para conhecer a cidade inteira. Morou a vida toda na mesma rua e um dia, já crescida, rejeitou moradia em Natal. “Não gosto daquele lugar não, gosto é de Gostoso, não saio de Gostoso nem morta”, me conta. Sentada na calçada de casa, onde passa a maior parte do dia, fala com os conhecidos e recita uma cantiga – Eu nasci sem nada/sem nada aqui estou/e até agora ninguém nunca me conquistou –, sem reconhecer a cidade da sua vida.

Joelma, a filha que desde criança se acostumou a ver os pedidos de encomenda chegarem, conta o que a mãe vê na calçada, mas já não consegue relatar. “É gente de todo lugar, automóvel demais. A cidade é diferente da que eu era quando era criança”, conclui.

Descoberta do paraíso
Encontro o tricampeão mundial de windsurf, Kauli Seadi, 36 anos, no seu centro de kitesurf na Ponta do Santo Cristo, uma das praias da cidade, no fim da tarde da quinta-feira, 5. Velejadores festejavam antecipadamente a viagem de kite de 1,2 mil quilômetro que iniciariam no dia seguinte, dali até o Maranhão – a chamada “downwind”. Havia franceses, canadenses, brasileiros do Ceará, Bahia e Maranhão, além de outros lugares. “O mundo está conhecendo os ventos do Rio Grande do Norte”, me diz Seadi, que teve o mesmo vislumbre em 2009. Um ano depois, estava morando em Gostoso com toda família.

Kauli Seadi, 36, foi atraído pelos ventos para seu esporte


Kauli Seadi, 36, foi atraído pelos ventos para seu esporte
Seadi nasceu em Florianópolis, começou a praticar o windsurf (surf feito com velas), foi três vezes campeão mundial do esporte e aos 26 anos foi convidado para ir à São Miguel do Gostoso por um patrocinador alemão. “Para você ver, os alemães já conheciam e eu não”, relata. “Quando cheguei aqui, encontrei o vento ideal para o wind e um ano depois trouxe a família porque fui recebido bem, gostei da culinária, encontrei tranquilidade”. Logo instalou um centro para a prática do windsurf e abriu uma pousada. Em 2016, decidiu abrir outro centro, mas de kitesurf.

A chegada do atleta foi vista por André Gugelmin, curitibano de 41 anos que está desde 2003 em São Miguel do Gostoso. Gugelmin foi um visionário, sócio de um bar que nasceu quando não havia nada a não ser a vila de pescadores. “Não tinha quase nada, e de repente foi brotando restaurante de um francês aqui, um espanhol ali. Aí eu falei: ‘opa, tá surgindo uma cena’”, fala. O crescimento do seu bar seguiu ao da cidade: “O bar era uma barraca de palha com sete pés de maracujá. Os gringos chegavam aqui e olhavam aquela fruta, achavam o paraíso”.

Nesse ritmo, se mantém até hoje com o mesmo entusiasmo de 2003, quando chegou a cidade para fugir da rotina do banco onde trabalhava em Curitiba. “Soube daqui por um amigo e vi que era o lugar ideal para o funcionário de um banco ir”, relembra. Logo se tornou sócio do brasiliense Sebah Campos, parceiro de negócios em Gostoso até o presente.

André Gugelmim, 41, enxergou o potencial do local


André Gugelmim, 41, enxergou o potencial do local
Tanto Gugelmin quanto Seadi participaram na mudança de São Miguel do Gostoso e não pensam em sair. Sabem que, sem eles, talvez a cidade não seria a que é hoje.
Turismo
Os descendentes dos antigos pescadores de São Miguel do Gostoso cresceram em um lugar diferente da época dos pais, quebraram a tradição da pesca e hoje são garçons, guias turísticos, administradores de hotéis e pousadas, praticantes do kitesurf e do windsurf. Os empregos nessa área surgiram com o aumento do turismo, à medida em que São Miguel do Gostoso foi ganhando esse perfil e sendo divulgada na mídia.

Filipe Tortorelli, mineiro de 36 anos, chegou a São Miguel do Gostoso na quarta-feira, 4, com a mãe Lurdes Gorgosinho e a esposa Laís Romanhol para passar dez dias de férias. Cerca de 12 horas depois da chegada, o encontro na praia da Xepa e pergunto as impressões iniciais dele sobre a cidade. “A cidade foi muito receptiva comigo, é algo que está encantando”, disse.

Filipe Tortorelli, 36, mineiro, de férias e em busca dos ventos


Filipe Tortorelli, 36, mineiro, de férias e em busca dos ventos
O que atraiu Totorelli para a cidade foi o kitesurf. São Miguel do Gostoso é o primeiro lugar que ele visita no Rio Grande do Norte, atraído pela fama do esporte. “Juntou nordeste, que eu amo, e o esporte do kitesurf, e até agora eu estou amando”, declarou.

De passagem mais breve, o canadense Scott Mackenzie, 58 anos, esteve em São Miguel do Gostoso pela mesma razão, mas de maneira mais radical: ele faz parte do grupo de velejadores do downwind e vai percorrer os 1,2 mil km até o Maranhão. “Aqui é o melhor lugar do mundo para a prática de kite”, responde em inglês com a autoridade de quem já velejou 1,5 mil km na prancha.

Scott Mackenzie, 58, partiu de Gostoso em viagem de kite


Scott Mackenzie, 58, partiu de Gostoso em viagem de kite 
Mackenzie estava no centro de kitesurf de Kauli Seadi na quinta-feira. Se preparava para os primeiros 60 quilômetros da viagem, até Galinhos. Seadi, acostumado a receber pessoas de outros países, faz questão de ressaltar que o kite, apesar de um grande atrativo, não resume o potencial turístico de São Miguel do Gostoso. “Vem gente do mundo inteiro para cá que aprova os restaurantes, a hospitalidade, as pousadas. O velejo é um atrativo, mas existem outras coisas aqui”, afirma.
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