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O tangedor de bois de prata

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Racine Santos
Dramaturgo e escritor

Acabo de ler, tardiamente, o livro de Ana Miranda sobre Augusto dos Anjos (A Última Quimera, Cia. das Letras, 1995). E, de imediato, com o ponto final, me veio a lembrança de outro Augusto: o Ribeiro Jr., aquele que sonhou um boi prateado inflamando as caatingas do Seridó. Acabada a leitura do excelente trabalho de Miranda fui, naturalmente, traçando um paralelo entre as vidas dos dois criadores. O paraibano morreu em Minas Gerais, longe de sua terra, de onde fora enxotado pela mesquinharia da politicagem provinciana. O Augusto do Rio Grande do Norte morreu em Brasília, exilado pela mediocridade de alguns potiguares que se alimentam de intrigas, bebem maldade e urina empáfia.

     Era um domingo de manhã, junho de 1995, quando me chegou a notícia da morte de Augusto. Veio por telefone. Era triste, mas acabava de morrer quem vivia para o sonho, quem há 40 anos ousou rodar um longa-metragem no Rio Grande do Norte. Coisa de louco, de um talentoso jovem de 27 anos de idade que moveu paus e pedras para realizar sua obra. Com ele teve início o cinema no Estado. O que foi feito antes foi obra de amador, experiências que, se tem algum valor documental, não tem a menor importância para a arte ou indústria cinematográfica brasileira ou mesmo potiguar.

     Ao ler “A Última Quimera” fiz a ligação da obra de Dos Anjos com a de Ribeiro Jr. Os dois augustos artistas deixaram, cada um, apenas uma obra realizada. O paraibano um livro, o norte-rio-grandense um filme. Lendo sobre a peregrinação de Augusto dos Anjos pelo Rio de Janeiro tentando sobreviver, me veio à lembrança a peregrinação de Augusto Ribeiro Jr. pelos gabinetes oficiais da cultura do Estado tentando realizar seu segundo filme e criar um polo cinematográfico no Rio Grande do Norte. Tudo em vão. Ele oferecia, propunha, mostrava projetos, queria fazer, mas ninguém movia uma palha. E hoje estamos fora do mapa da produção cinematográfica no País.

     O mal de Augusto Ribeiro Jr. foi realizar, fazer, produzir, em vez de ficar perdido em convescotes em livrarias ou bares da cidade. Mais: produziu uma obra que rompia com os limites da província. E nós sabemos que uma boa parte de nossos provincianos não perdoa o sucesso alheio ou de alguém fora de seu grupo, da patota. E ele era um talento independente. Carregava sua própria bandeira e entoava um hino que queria fazer de todos.

     O segundo filme não saiu. Seria baseado na obra de Eulício Farias de Lacerda, “O Dia em que a Coluna Passou”, do qual me descrevia entusiasmado, com um brilho nos olhos, como seriam as primeiras cenas (“… Uma jovem tomando banho num riacho, de repete vê um lenço vermelho de sangue boiando, trazido pelas águas”). Mas não foi além do roteiro, do qual colaborei com os diálogos. O Rio Grande do Norte são se interessou e perdemos a oportunidade de produzir um segundo longa-metragem que ajudaria a nos lançar nas telas do País. Pior pra gente.

     Cansado de malhar em ferro frio, um dia arrumou o matulão e foi embora. Sem mágoas, sem rancores, sem ressentimentos, pois seu coração só tinha lugar para o sonho e para o afeto. Era um homem coletivo, como sua arte. E me dizia coisas contundentes nas longas jornadas que fazíamos noite adentro, tangendo seus bois de prata: “O povo, Racine, mesmo estando errado, está certo. ” Numa dessas noites perguntei por que não aceitara o cargo que lhe haviam oferecido em u órgão público do Estado. E ele: “Não quero emprego, quero fazer um filme.”  Era o artista certo, convicto, senhor de sua vocação e de seu ofício.

     Quase vinte anos depois de realizar “O Boi de Prata”, longe de seu chão seridoense, se preparava para concretizar um grande sonho: filmar “O Quinze”, de Rachel de Queiroz. Com um projeto aprovado pelo Ministério da Cultura e com o apoio do Governo do Ceará, começou a rodar o filme em janeiro daquele ano, na cidade de Quixadá. Era o filme que muitos cineastas brasileiros desejavam fazer, mas Rachel não dava o “sim”. Deu a Augusto Ribeiro Jr., confiando a ele a empreitada de levar para a tela a obra que a consagrara como escritora.

    Vieram as chuvas. E ele teve que suspender as filmagens, quando boa parte do filme já estava em celulose. Aproveitou e viajou para junto dos filhos, em Brasília, passando antes por Natal para ver os pais. Almoçou comigo, em minha casa, e no outro dia viajou para cumprir seu destino. Morreu na capital do país, deixando um filme pela metade e glória por fazer, como o personagem de Homero.

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