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O Testamento do Pastor

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Não foi surpresa para ninguém a morte do “pastor” Ethevaldo. Surpresa, sim, foi o seu testamento. Era o assunto geral da cidadezinha. Não se falava em outra coisa. Em qualquer conversa o tema era o mesmo: o tal do testamento. A morte em si já era esperada há anos, tal era o histórico de entra e sai de hospital que o agora defunto tinha. Uns diziam que ele era hipertenso, diabético e portador de casos com os rins, bofes e fígado; outros que era apenas hipocondríaco, que tinha uma preocupação obsessiva com a saúde. Há que se levar em conta, também, a sua idade, que já passava em muito dos setenta.

Ethevaldo era um viúvo sem filhos, que morava sozinho em uma casa demasiada grande para o padrão da cidade. De poucas amizades, dizia-se que ele somente tinha dois amigos: o vira-lata Rex e o Padre Aleixo. Os três sobrinhos e a sobrinha, filhos de sua única irmã (já falecida), ele somente via uma vez por ano, no dia do seu aniversário, quando todos vinham da capital, almoçar em sua casa. Intrigante era sua amizade com o padre Aleixo. Enquanto o padre era um crente convicto e ferrenho seguidor dos ensinamentos e dogmas da santa Igreja Católica Apostólica Romana, seu amigo era um ateu pragmático.

Um dia, no meio de uma discussão sobre o significado da santíssima trindade, o padre disse que Ethevaldo não entendia do assunto porque não tinha conhecimento formal para compreendê-lo. Foi o bastante para que o viúvo tomasse de seu velho Opala, fosse até a capital, onde se demorou por um mês inteiro, sem dar noticia nenhuma a ninguém. Quando voltou para sua cidade era portador do titulo de pastor, emitido por uma nova congregação, uma dessas tantas que ultimamente pululam pelo mundo. Fez um curso bíblico rápido, prometeu abrir uma igreja em sua cidade e fez uma generosa contribuição aos cofres da instituição. O novel pastor Ethevaldo continuou incréu e amigo do padre Aleixo, só que agora exibia na parede de sua sala de visitas um Diploma de Pastor, como prova do seu conhecimento formal sobre as coisas de Deus, em quem – alias, diga-se para esclarecer – ele continuava não acreditando.

Mas isso tudo já era sabido de há muito tempo e, portanto, não era mais assunto na cidade. O assunto era mesmo a esquisitice do testamento. Para cada sobrinho Ethevaldo deixou uma Bíblia, uma nota de um real, uma outra de um dólar e uma pequena carta, quase bilhete, onde dizia para eles seguir as lições morais que jaziam escondidas nas historias da Bíblia e que as cédulas de dinheiro eram para eles se lembrarem de que nem sempre o que vale mais é o que se apresenta com mais valor. O grosso de seus recursos – as fazendas, a casa grande da cidade, as ações do Banco do Brasil, da Petrobras e de outras empresas deixou, na forma de uma Fundação, para a paróquia do padre Aleixo, que deveria administrá-la enquanto vivesse. O vira-lata Rex também ficou sob os cuidados do padre, que deveria bem cuidar do animal e, quando este morresse, fazer um enterro decente, inclusive rezando uma missa em agradecimento pelas alegrias que o animal tinha dado ao seu dono – não em intenção da alma do cachorro, pois alma era coisa em que o pastor Ethevaldo não acreditava; nem de gente.

Para Totonho, o jardineiro e faz-tudo, deixou todo o terreno do jardim da casa, com direito para ele vender e fazer o que quiser com o dinheiro. Para Dona Josefa, a cozinheira deixou uma casa e uma pensão de dez salários mínimos, a ser paga pela Fundação administrada pelo padre Aleixo. Para Otacílio Mecânico, deixou o seu velho Opala de guerra. Para suas cunhadas, irmãs da sua falecida esposa – Dona Santinha, mulher do empertigado juiz Antonio Carvalho Duarte da Cruz e Silva; e Dona Sonia, mulher do major Pereirinha – deixou um cacho de bananas para cada uma delas.

Os sobrinhos já entraram na justiça, tentando anular o testamento, mas o próprio Dr. Antonio Carvalho Duarte da Cruz e Silva já disse que era impossível. Segundo ele, o testamento era coisa bem feita. Coisa de advogados chicaneiros da capital.

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