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O voo de Paulo Balá

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Noite de quinta-feira que passou, na Igreja de Santa Terezinha, foi celebrada a missa do 30º dia do falecimento do doutor Paulo Bezerra, médico e escritor. Hoje será na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Guia, no Acary, onde ele nasceu.  A missa em Natal foi concelebrada pelo Cônego José Mário e o Padre João Medeiros Filho, ambos confrades do ilustre morto na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Sertanejos, os três, nascidos no mesmo Seridó. Na Homilia falou o Padre João Medeiros. Sua fala é como se fosse uma carta Paulo Balá. Belo texto firmado no Evangelho e com forte sotaque poético. Encantou, emocionou a todos, encantamento que passo para os queridos leitores:

“Nossos anos são setenta. Se formos abençoados, viveremos oitenta. O tempo passa rápido e depois levantamos o voo” (S1 90, 10). A poetisa Adélia Prado inspiradamente disse que “a sabedoria e a poesia são as asas da alma, que nos levam até Deus”. Meu grande amigo, Paulo Balá, sábio das coisas do sertão, poeta da realidade do Seridó, por muitos amados, voou para o colo de Deus, para “os braços da Paz”, segundo os versos de Nando Cordel e Dominguinhos. Sentimos saudades “do teu olhar carinhoso, do teu abraço gostoso”.

Somos viajantes, tangedores da vida em busca do Infinito. E como ninguém, pela sua fibra e grandeza interior, honradez e simplicidade, elegância e lhaneza, Paulo Bezerra foi o vaqueiro de todos nós, levando-nos a renovar as energias nos campos de sua rica fazenda cultural, a saciar nossa sede nos mananciais da esperança, apontando as fontes da alegria e da serenidade.

Há uma lenda entre os índios kadiwéus, transcrita pelo antropólogo Darcy Ribeiro, afirmando que “a morte leva à vida oculta e silenciosa ao ser vivo”. E acrescenta: “Aqueles que amamos não morrem, transmigram”. Santo Agostinho, tão humano e místico, ensinava a seus diocesanos de Hipona que só a morte nos faz semelhantes a Deus. Este é abscôndito e silente, portanto mistério. E a morte nos leva a esse mistério inefável. Dele um dia saímos e para Ele voltaremos, pois somos peregrinos do Eterno, romeiros do Infinito. “A morte é apenas o cavalo selado, que nos leva até a porteira de Deus”, expressou-se, um dia, Oswaldo Lamartine, tão próximo e tão irmão de Paulo. Ambos estão no céu escolhendo o aboio mais bonito, que possa alegar os anjos e os santos da Eternidade.

Hoje estamos com o grito da saudade, preso dentro de nós. Ela é a presença do ausente, aparentemente tudo o que fida daquele que não ficou. A saudade é o distante dentro de nós, a voz silenciosa do ausente. Mas, Deus existe também para nos curar da saudade. Não queiramos falar ou escrever muito, porque a palavra é pobre e pode espantar ou cansar.

Apraz-me lembrar, como cristão e sacerdote, que Paulo Bezerra era um homem de fé, cheio de Deus. Não aquele Deus da liturgia, dos ritos e das cerimônias, mas o Deus do Amor e da Beleza, que plasmou a vida do homem simples e sertanejo, pleno de riqueza, da encantadora e inefável sabedoria, que ele tão precisamente descreve em sua obra literária, mas sobretudo no pulsar do seu coração. Em algumas conversas, Paulo me dizia que Cristo, na sua vida terrena, não costumava administrar sacramentos; missa só uma celebrou; confissões fez algumas, como aquelas que tocaram a alma da samaritana e o coração de Madalena. Não se encontra Jesus nos evangelhos batizando, crismando, casando. O Mestre é um Deus que anda, conversa, fala, ouve e sente as angústias humanas, um Deus que ama e perdoa. O Evangelho está repleto de Cristo que ensina e orienta, compreende e ilumina: “Ninguém te condenou? Eu, muito menos. Vá e não peques mais” (Jo 8, 10-11). Para Paulo Balá, Cristo era o mais perfeito de todos os radiologistas. Tinha a mais nítida imagem da alma humana, com suas doenças e limitações, tropeços e pecados.

Toca-nos, ao adentrar a sala da entrega de exames do Instituto de Radiologia de Natal (na sua sede do Tirol) e encontrar, belo e soberano, um painel da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Guia, do Acari, onde foi ele perfilhado por Deus e amadrinhado por Maria Santíssima, a Mãe de Deus e Mãe Nossa. Uma alma cheia das coisas do Infinito é possuidora de tais gestos. A belíssima foto é simbólica. Indica-nos que Maria Santíssima é igualmente a Senhora dos Remédios, que ameniza a dor, o sofrimento da alma e enxuga as lágrimas do coração.

Saudades de Paulo Balá, do fazendeiro nobre e fidalgo, do médico simples e humano, um eterno aprendiz, que nos faz lembrar o poeta: “cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”. Faltar-me-á nos dias que me sobrarão o meu amigo, humano de fé, que irradiava um profundo amor a Deus, que – segundo sua própria expressão – queria que ele fosse um amante da Palavra divina, pois Cristo é o Verbo de Deus, diante do qual Pedro – quando instado pelo Mestre se iria abandoná-lo – exclamou: “A quem iremos, Senhor, só tu tens palavras de Vida Eterna” (Jo 6, 68). Paulo Balá ensinou-me que “a Verdade é oração verdadeira e o Amor, sacrário onde fica Deus”.

Agora está no céu imortalizado, o homem do sertão, o dono de Pinturas, marcando (ferrando) outros bois, apartando outros bezerros, ordenhando outras vacas, selando e montando outros cavalos, tocando outros búzios, cantando com o seu vozeirão sertanejo as belezas da vida. Pertinho de Nossa Senhora, da divina Mãe Compadecida, rosto materno de Deus, ele fala manso e suave: “Mãe, seja a Senhora a guia de Zélia, Cassiano, Flávia, Micaela e Julião e meus netos”. Meu grande amigo pedirá a Cristo que continue sempre sendo o vaqueiro dos seus filhos, familiares e amigos, sentinela e guardião de uma de suas maiores obras – depois de sua fé e seu amor – o Instituto de Radiologia de Natal.

Por fim, grande amigo e colega, aí na imensidão do Céu, dê por mim um abraço saudoso em Oswaldo Lamartine, Padre Cortês, Geraldo Galvão, Chico do Padre e tantos amigos – especialmente os mais irreverentes – com os quais convivi nessa aba da serra e nesse sertão, pobre de água, mas rico de hospitalidade e grandeza de alma.

Um dia encontrar-nos-emos todos para celebrar o grande banquete dos justos e dos eleitos de Deus. Paulo, amigo imortal, desfrute das maravilhas celestiais, passeando nos jardins do Paraíso, cofiando o seu bigode, rindo dos bobos que se acham sábios ou donos da verdade, aqui na terra. De perto de Nossa Senhora da Guia, amigo velho – como eu o chamava sempre – olhe e ore por nós. Ah! Não se esqueça de pedir a Cristo água para o Açude de Gargalheiras e muito pasto para as terras de Pinturas. Paulo Balá, seus filhos e netos cuidarão do seu amor e nos ajudarão a eternizar as suas virtudes. Oxalá, o seu sucessor na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras continue defendendo e conservando viva a alma de nossa cultura regional, como fizeram com maestria seus antecessores, Juvenal, Oswaldo Lamartine e você.

Um abraço do seu amigo “Vigário”.

Natal, 15 de agosto, dia de Nossa Senhora da Guia, 2017.

Padre João Medeiros Filho”

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