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Orfandade nacional

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A perda e a saudade. A ausência do que dá substância ao existir. Sentimentos, ideais, sonhos, convicções e a busca de novas dimensões na vida. A coexistência entre o espiritual e o material. A compreensão de que o ser é intemporal. Indestrutível. Alimenta-se do que é imperecível e insuperável. Visualiza a destinação da vida além do que é perceptível, palpável, submetido ou consumido. Imerge no sentido universal de tudo e de todos, que se projeta muitíssimo além das coisas visíveis. Identifica Deus e sua criação. Detecta ser sujeito, parte e fim de uma vida ilimitada; renovada nos seus desdobramentos e nas perspectivas intermináveis da obra divina. Reconhece que é impossível desfrutar a felicidade isoladamente, individual e exclusivamente. A fruição da felicidade é partilhada. Duas ou mais pessoas a buscam, conquistam-na e a desfrutam. É amálgama perene em âmbito espiritual. Em que uns dão mais, outros recebem menos. Mas sem a negação do ser e de sua dignidade.

O ter, em toda a vertente dos tempos, divide, segrega, destrói e subverte os sentimentos. Desde Caim e Abel. Afronta o sentido da vida e das coisas. Infunde o ódio onde antes germinava o amor. Circunstância em que a paz é suplantada pela violência. A solidariedade é substituída pela insensibilidade. A fraternidade é vencida pela impiedade. Seu domínio, como um fim em si mesmo, converte-se num processo de destruição dos sentimentos e da dignidade humana. Um dos mais contundentes exemplos dessa tragédia foi a Alemanha de Hitler. Nada lhe sobreviveu, senão vergonha, sofrimento, destruição e degradação. O escritor Erich Maria Remarque, no romance “Tempo para amar e Tempo para morrer”, convertido em filme pelo diretor Douglas Sirk, com o título “Amar e Morrer”, fez uma perfeita, trágica e dramática narrativa da devastação e da miséria enfrentadas pelos berlinenses nos últimos dias da guerra. No filme, Remarque interpreta um professor universitário, atormentado e dilacerado com cenas de devassidão e disputa por resto de comida numa cidade antes opulenta e suntuosa. Entre ruínas proclama para si mesmo: “No desespero e no perigo, as pessoas aprendem a acreditar no milagre. De outra maneira não viveriam.” Anos mais tarde, Remarque comentou que aquelas cenas superaram em agonia e desolação a “tragédia” dos principais personagens de John Steinbeck em “Ratos e homens”.   

O Brasil, de algum tempo a esta parte, vive uma espécie de catarse. Nenhuma nação pode perder seus sonhos. Até os efêmeros, momentâneos, circunstanciais. Muito menos os permanentes, que lhes dão vida no fluir da vertente dos tempos. A alma de uma nação se renova no cotidiano de cada um. Desde a simplicidade daquele que desfruta a felicidade com muito pouco. Mas suficiente para preservar sua dignidade e debulhar o sentido da vida.  Também as conquistas daqueles que, em qualquer ramo de atividade, sabem mobilizar e liderar setores dinâmicos da economia. Capazes de ampliar a fruição de bens e serviços por toda a sociedade. Mas, para usar o superlativo, sobretudo e principalmente no âmbito da cultura e das artes. Sem limites nem discriminação de qualquer natureza. É o caso da poesia de Gonçalves Dias, que explode em amor aos valores eternos do Brasil, de sua configuração física à maneira de ser do seu povo. Ao fantástico entrelaçamento de raças, culturas e fé religiosa, desde os primeiros tempos do índio, do africano e do português. Gonçalves Dias foi profético, como o foram Castro Alves, Olavo Bilac, Coelho Neto, Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos e muitos outros. Essa poesia teve momentos marcantes e singulares até hoje. Como os que emolduraram a poesia de Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes.

Há, entretanto, uma triste e lamentável constatação. O Brasil é órfão. De pensadores. De homens como Cascudo, Gilberto Freyre, Afonso Arinos, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado, Darcy Ribeiro, Oliveira Viana, Caio Prado Júnior e Vianna Moog, que desvendaram e conheceram a nossa alma nacional. Enfim, o que nós somos, o que sonhamos, o que queremos, e, o mais importante, a nossa visão peculiar do mundo e da vida. Não nos esqueçamos, porém, da genialidade de Euclides da Cunha. Pois nenhuma nação sobrevive no tempo sem esses guias. Ressalte-se na literatura, entre tantos, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Machado de Assis, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, José Lins do Rêgo, Ledo Ivo e Josué Montello. E os poetas, cantadores e emboladores? Nos primeiros momentos da nacionalidade eles decantavam nossos sonhos e sentimentos. Individuais e coletivos. Deram vida à alma popular. Interpretaram o que está dentro de cada um de nós. Preservaram nossos valores em todas as circunstâncias da nossa História. Resistiram, como em Portugal à época da ditadura salazarista. Especialmente com esse dito em “Pedra filosofal”: “Pois eles não sabem que o sonho é uma constante da vida, porque quando o homem sonha o mundo pula e avança”. Impossível reprimir os sonhos.

Há uma orfandade nacional. O brasileiro comum, simples, pacífico, sonhador, criativo e original, cristão, em muitas circunstâncias de sua vida com excessiva boa-fé, conciliador, está sendo esmagado. Em seus sonhos e em sua concepção de vida. Pelo bombardeio insano das redes de televisão. Para elas o sonho brasileiro acabou. Só há violência e decomposição das nossas instituições. Nenhuma se salva. Tudo é escândalo. O desapreço à vida parece ser um mito invencível. Um Hércules que a tudo e a todos destrói.

A violência, a impunidade e os desvios na vida pública existem. Mas o Brasil sofre um processo incomum de erosão em sua maneira de ser. É hora de protestar. De exigir que as redes de televisão assumam seu compromisso com a verdade, que pesquisem os fatos sem o ânimo do sensacionalismo, exibindo, inclusive diuturnamente, cenas de abominável violência. Afinal, qual é o compromisso ético e moral da televisão? Impõe-se também a revalorização da nossa cultura na televisão. O brasileiro, enfim, quer viver bem e feliz.

Estamos na aldeia global. Mesmo assim, nela sobrevive esse brasileiro real, autêntico, inspiração essencial de Cascudo e Gilberto Freyre. Esse homem quer seu lugar no presente e no futuro. Revoguemos a orfandade que lhe será fatal e que está em marcha…

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