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Pacientes disputam vaga em UTI

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Isaac Lira – repórter

Separados por poucos metros e dois cômodos, Geraldo e José (nome fictício) compartilham angústias semelhantes. Entre a enfermaria e a sala de reanimação do Hospital Santa Catarina, na zona Norte de Natal, os dois sofrem a mesma espera: uma vaga na Unidade de Terapia Intensiva do maior hospital da zona Norte. Em 24 horas, um deles estará morto e o outro terá conseguido, entre tantos outros, um leito na unidade de saúde superlotada.

Paciente espera no setor de reanimação do Santa Catarina, por uma vaga na Unidade IntensivaMas nesse ponto da história os dois ainda são parecidos. José está  sentado, cansado, com dores no peito. Poucos minutos antes, estava desacordado, no chão de casa, quando foi levado para o Hospital pelo filho. O diagnóstico é duro: infarto. Mais um para se somar às duas pontes de safena conseguidas em 56 anos de vida. Contrastando com a gravidade do quadro, José está acomodado numa cadeira, no corredor, defronte à enfermaria. O plantonista já avisou que a UTI é necessária. Mas, como todos os dias, não será fácil conseguir.

Geraldo Magela, de 67 anos, conhece bem essa dificuldade. No dia em questão – segunda-feira da semana passada – fazia 13 dias que o aposentado estava no Santa Catarina. O quadro é de pneumonia, o que para um senhor de 67 anos com um histórico de problemas de saúde, é algo preocupante. Desde o oitavo dia, Geraldo tem uma indicação para uma unidade de terapia intensiva. Sem vagas, a solução encontrada pela equipe de médicos foi improvisar a reanimação, com aparelhagem e enfermeiros. Geraldo Magela visivelmente definha.

 Como nenhum dos dois, e nem mesmo os companheiros de espera na fila da UTI, estão sozinhos nessa luta, os parentes ganham um papel importante a partir da primeira negativa. Cabe a eles pressionar o poder público para o cumprimento da obrigação constitucional de prover atendimento. Nesse ponto, as tensões chegam ao limite. Se por um lado o Hospital Santa Catarina, e qualquer outro da rede, é obrigado a atender, por outro os funcionários não têm como fazer milagres. Daí, surgem os conflitos.

“E ele vai morrer ali?”. Essa foi a reação de Patrícia (Nome fictício) ao saber que era o corredor o local disponível para o seu irmão, José. A esse momento, o aposentado de 56 anos tinha dificuldades para suportar a falta de ar e as dores no peito. “Ele queria deitar no chão, mas eu não deixei. O médico disse que iria fazer o possível, com medicação, para controlar o caso”, relata Patrícia. Na frente de José, havia quatro pessoas, todas necessitando há mais tempo de terapia intensiva.

Um deles, Geraldo Magela, estava praticamente no limite. Após seis dias de espera, Geraldo não conseguia mais falar, segundo conta sua sobrinha, Iara Souza, de 35 anos. Seu semblante, antes corado, agora estava pálido, com exceção de uma mancha vermelha que se destacava na sua testa. Há 13 dias não estava assim. Com um quadro de pneumonia, Geraldo teve, após sete dias na enfermaria, insuficiência cardiorespiratória. Foi aquele corre-corre, agravado pelo fato de que não havia vaga na UTI.

As manchas arroxeadas na face era o mais preocupante. A própria sobrinha, técnica em enfermagem, anteviu o cenário. “É um sinal claro de AVC”, relembra. Iara Sousa não estava disposta a observar o tio morrer sem tentar de alguma forma um tratamento que lhe desse sobrevida. Alguém teria de dar uma resposta.

Hospitais têm só 138 leitos de UTI

A carência de leitos de UTI no Rio Grande do Norte, particularmente na capital, é motivo de uma ação na Justiça, capitaneada pela promotora da Saúde, Iara Pinheiro. O processo foi iniciado em abril e tenta “obrigar” o Estado  e o Município de Natal a adequar o número de leitos ao mínimo estimado pela Organização Mundial de Saúde. Até agora Estado e Município não se adequaram às recomendações do Ministério Público.

Em resumo, o problema que causa situações como as vivenciadas por Geraldo e José é a falta de leitos e a concentração em Natal. As tratativas do Ministério Público junto às secretarias de saúde datam de 2006. Desde então, a promotora Iara Pinheiro tenta negociar com o poder público o aumento de vagas, tanto com a criação de novos serviços quanto com a contratação em hospitais privados. Como não houve êxito no diálogo, a promotoria tentou a via judicial, por meio de uma ação civil pública.

O mais recente capítulo da luta na Justiça teve o pedido acatado pela juíza da 3a. Vara da Fazenda Pública, Ana Cláudia Secundo, pela definição exata de quantos leitos existem no Estado e de quem é a responsabilidade por eles.  O maior déficit está nos municípios. Como se sabe, Natal não conta com hospitais do Município, embora a Secretaria Municipal de Saúde tenha contratado junto a rede privada 20 leitos de UTI para compensar a carência.

Segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde, existem 138 leitos de UTI, sob responsabilidade do Estado, em todo o Rio Grande do Norte. Desse total, 102 estão em Natal. Isso significa uma concentração de pouco mais de 86% das vagas disponíveis em Natal.

Esses números ficam distantes da projeção feita pelo Ministério Público, com base em dados da Sociedade de Terapia Intensiva do Rio Grande do Norte. Seriam necessários, de acordo com essa base de cálculo, entre 300 e 360 leitos no Estado, sendo  entre 77 e 94 somente na capital. Esse é o cálculo do mínimo necessário.

O Governo do Estado anunciou  em setembro deste ano, com a criação do Hospital Rui Pereira, mais 14 leitos de terapia intensiva, mas até esse momento somente três foram viabilizados. E esses não servem para drenar a superlotação de hospitais como o Walfredo Gurgel e o Santa Catarina. “Essas três vagas são utilizadas para o público do próprio Hospital Rui Pereira, nas cirurgias vasculares e casos de diabetes”, diz Valmira Guedes, diretora do Hospital.

Mais quatro leitos estão prontos para serem utilizados, mas faltam técnicos de enfermagem. Outras sete vagas estão em uma segunda sala de UTI, que necessita de aparelhamento adequado. O trabalho ficará para o próximo governo.

Sobrinha pede que médico tire paciente da UTI

O diretor administrativo do Hospital Santa Catarina, Carlos Leão, ouviu naquela segunda-feira um pedido difícil de atender. “A moça queria que o médico retirasse um paciente da UTI para colocar o seu parente”, diz. O raciocínio de Iara era simples: havia na terapia intensiva pacientes supostamente, na avaliação dela, em melhor estado de saúde que Geraldo Magela. “Não entendo como um diretor de hospital não tem poder para trocar um paciente numa UTI”, reclama Iara.

Carlos Leão rebate: “Isso é uma coisa que depende do médico. Eu não posso me meter. Além disso, é quase impossível um médico retirar um paciente de uma UTI para colocar outro. E se o paciente retirado piorar? Quem vai responder?”. Esse é só um exemplo de como a carência de recursos pode azedar a relação entre usuários e profissionais. Os familiares e pacientes olham com emoção. É natural. Uma vida pode ser salva ou perdida, a depender de uma decisão como essa. Já os profissionais analisam com a frieza dos números. O número de leitos é limitado. Ocupou, acabou. Melhor passar outro momento.

Não seria possível um novo momento para Geraldo Magela. Naquela mesma noite de segunda-feira, o monitoramento cardíaco do aposentado cessou o ruído agudo e arrastado que enchia o ar da sala de reanimação. Geraldo faleceu vítima de complicações de um acidente vascular cerebral, além da pneumonia, não debelada mesmo após quase 15 dias de tratamento. O tio de Iara Sousa morreu em meio a aparelhos e enfermeiros. Nenhum médico de prontidão. É impossível dizer se o aposentado sobreviveria caso houvesse uma UTI.

Sorte diferente teve José na mesma segunda-feira, antes mesmo da agonia de Geraldo. Se pouco antes não havia vagas, José conseguiu, seis horas depois do primeiro antedimento, um lugar na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Santa Catarina. Sorte? Providência? A família preferiu não especular, assim como preferiu não divulgar os verdadeiros nomes. A justificativa é simples. O objetivo – a vaga em uma UTI – foi conseguido. E a divulgação das horas de agonia antes do desenrolar do caso poderia ser interpretada como “ingratidão”.

Não atender significa risco de morte iminente

Da mesma forma como a história de Geraldo e José mostra, a rotina dos hospitais potiguares para conviver com a escassez de vagas nas unidades de terapia intensiva é baseada em improvisos. Esse é um tipo de situação onde não é possível simplesmente deixar de atender. Se alguém tem uma dor de cabeça, procura um médico e não consegue atendimento, é possível “deixar para depois”. Todavia, casos de terapia intensiva merecem urgência. Não atender significa risco de morte iminente.

Entre os locais com unidades improvidas para terapia intensiva, o Hospital Walfredo Gurgel merece destaque. Não poderia ser diferente. Trata-se da unidade de referência em atendimento de urgência. A equipe do Walfredo sofre como nenhuma outra os efeitos da falência do sistema. Para conseguir atender os pacientes, há pelo menos dois locais que funcionam frequentemente como UTI, embora não o sejam. São eles: o Centro de Recuperação de Operados e, como no Santa Catarina, a reanimação.

Quando as UTIs estão lotadas – que acontece quase sempre – os médicos encaminham os pacientes para essas duas alas. No caso de até mesmo a reanimação e o CRO estarem sem vagas, é possível acomodar pessoas nas enfermarias. Os equipamentos necessários – ventilação mecânica para auxiliar na respiração ou monitores cardíacos, entre outros – estão presentes, assim como os enfermeiros. Não é possível dizer o mesmo a respeito do médico.

De acordo com Sebastião Paulino, intensivista que atua no Hospital Walfredo Gurgel e em outros hospitais, a principal diferença entre estar acomodado em um desses locais improvisados e em uma UTI de fato é a presença do médico. “Em uma UTI o médico acompanha a todo momento a evolução do quadro do paciente. Isso faz toda a diferença. É preciso modificar a administração de certos medicamentos, como ajustar o funcionamento das máquinas. Somente um médico capacitado pode tomar essas decisões, que, no final, são fundamentais para a sobrevivência da pessoa em questão”, explica.

O Hospital Walfredo Gurgel tem uma média de 10 a 15 pessoas diariamente na fila por um lugar na UTI. São pessoas com câncer, acidente vascular cerebral, vítimas de acidentes de moto e carro, violência urbana, etc. O procedência também é variada, com mais pessoas de Natal, mas algumas vindas dos quatro cantos do Estado. Todos os dias o plantonista da terapia intensiva recebe uma cópia, com nomes, origem, quando chegou ao hospital e quando foi solicitada a UTI. Pessoas esperam quatro, cinco dias por uma vaga. E morrem lentamente enquanto a vaga não chega. Morrem mesmo. Não há outra palavra para definir.

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