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Pão e escrita de cada dia

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Maria Betânia Monteiro – repórter

Um dos importantes nomes da literatura lusófona  começou a escrever em troca de um pão com manteiga, iguaria cobiçada em um das ilhas do Timor, na Ásia. O escritor Luis Cardoso Takas, que prefere ser reconhecido como um “amante da palavra escrita e um bom leitor”, recebeu a ajuda do filho do padeiro português, para se lançar no universo literário, publicar 4 romances e lecionar em universidades. O timorense conta como passou de habitante de um país que não consome nem produz livros, a referência em literatura lusófona.

Luis Takas lança o livro “Réquiem para um navegador solitário”Luis Takas recebeu a reportagem do VIVER numa das salas da casa do folclorista Luiz da Câmara Cascudo, após ter visitado o museu alocado na última morada do ilustre potiguar. Visivelmente encantado com o acervo e com a até então inédita produção de Cascudo, Takas proferiu as primeiras palavras com a voz baixa e acompanhada de expressões comedidas.

Quando o timorense começou a contar sobre a origem do Takas escritor, foi por água abaixo toda a aparente timidez. Ele falou sem pausas sobre as localidades percorridas na companhia do pai, no Timor, na época em que o país ainda era colônia portuguesa. “Meu pai era enfermeiro. A cada dois anos ele mudava de cidade”, disse o escritor. Ele explica que o Timor é composto por vários grupos étnicos- lingüísticos e na passagem por estas localidades era preciso aprender os dialetos vigentes.  Uma tarefa prazerosa para o menino Takas e indispensável para o pai, que precisava receitar medicamentos.

A passagem por essas localidades do Timor ajudou a construir no escritor, uma memória imagética do país, que anos depois viria a ser revelada em seus romances. Como se tivesse vendo tudo passar na frente de seus olhos, Takas descreve o ambiente onde o pão fresco, pincelado de manteiga foi lhe oferecido em forma de pagamento pelo seu primeiro trabalho como escritor, contando apenas sete anos de idade.

“Pão era item de luxo”,  diz    

Desfrutando da paisagem da ilha de Ataúro no Timor-Leste e dos ensinamentos catequistas de católicos portugueses, Takas aprendeu a ler e a escrever. “Foi ali que dei conta de mim”, disse o escritor. Segundo ele, na ilha tinha um senhor português, proprietário de uma padaria e que fazia um bom pão. O filho do padeiro estudava nesta escola. “Nós quase não comíamos pão. Nossa alimentação era à base de batata e de raízes. O pão era um item de luxo”. Estimulado pela baixa oferta do alimento e pela grande vontade de comer, ele encontrou um meio de garantir o pão de cada dia: fazer as redações para o filho padeiro. Takas sempre fazia duas versões, uma para ele e outra para o filho do senhor padeiro, que pagava com um pão amanteigado. “Era muito um trabalho, porque dava muito trabalho imaginar duas versões para o mito do crocodilo”.

O escritor refaz na fala a imagem do filho do padeiro chegando atrasado, como de costume, incensando a sala de aula com o cheiro do pão.  “Era uma alegria enorme sentir o cheiro do pão, que eu ganhei com o meu trabalho”. E foi com esta experiência de escrever redações em dose dupla, que Takas desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita.

Depois do vínculo ‘empregatício’ com o filho do padeiro, a parada seguinte no universo literário foi em sua adolescência, quando passou a escrever castas de amor às namoradas. Não só às suas, mas às dos amigos também.   “Alguns colegas pediam para que eu escrevesse cartas de amor. Fiz como o personagem de Garcia Marquez, no livro Amor em Tempos de Cólera”. Em sua infância e em parte de sua juventude, Takas disse ter conhecido apenas um único livro: a Bíblia. “No Timor nunca tive a possibilidade de ler, não tínhamos biblioteca. Quando queria ler alguma coisa tinha que recorrer à Bíblia, que hoje tem uma relação de leitura e de amor”. Segundo o escritor, as histórias sobre Moisés e Salomão, “com todos aqueles dramas”, contribuíram para o desenvolvimento de sua criatividade literária.

A profissionalização do dom chegou a Luis Takas em Portugal, onde passou a residir. Ele foi ao país para concluir os estudos básicos e ingressar num curso superior. Cursou um ano de medicina, para atender o desejo do pai, mas abandonou o curso logo no primeiro ano. “Eu vi que agüentava mais as minhas dores do que as dores dos outros. Eu não suportava ver sangue”. Em seguida ingressou no curso agronomia e desta vez cursou até o final.

Em Portugal resolveu escrever seu primeiro livro, Crônica de uma Travessia, que foi bem recebido pela crítica.  “Não sei se o livro é ou não autobiográfico. O que eu queria mesmo era mostrar um pouco do Timor às pessoas”. Depois deste livro o autor foi incentivado a escrever outros. “Comecei então a escrever, escrever… De modo que, não existindo muitos escritores no Timor, quando tem eventos como este de Escritores da Língua Portuguesa, as pessoas sempre me convidam”.

Luis Takas esteve engajado nas ações de independência do Timor por muitos anos. Ele fez diversas visitas ao Brasil para pedir apoio do Governo e de militantes políticos na luta pela independência, tendo obtido êxito. “Toda esta gente que hoje está no governo, como o atual presidente, ajudou na independência do Timor. O país recebe ajuda do Brasil, que envia professores e militares do exército, por exemplo”. 

O seu contato com Timor é com a família e com os amigos. Morando em Portugal por razões afetivas e profissionais, Takas disse não querer ser reconhecido por ter sido um membro da resistência de seu país, mas por ser um bom pai e um bom escritor. Com 50 anos e uma filha de apenas sete meses de vida, ele diz que não teve tempo de cuidar de sua própria vida. “Cuidava de meu país. Agora quero tratar de mim mesmo, sem levar a pátria nas costas, só a minha família”.

O escritor que veio a Natal para participar do EELP, segue ainda esta semana para São Paulo, para fazer a apresentação de seu novo livro: Réquiem Para um Navegador Solitário.

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