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Perenidade

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN

O julgamento da História mantém notável identidade com os laços humanos. Insuperável, sentimental e enigmática vinculação entre o reconhecimento popular e a perpetuação da lição de vida de homens excepcionais. Sua existência é ato de doação. Entrega exclusiva ao servir à coletividade. Eis inspiração que se renova na História. Ainda que, de tempos em tempos, a humanidade, em todos os povos, e em todas as civilizações, mergulhe em ciclos nos quais predominam mediocridade, egoísmos, mesquinharia, ódio, violência e descompromisso social. São retrocessos que se perdem e se apagam na poeira do tempo. Pois o mal acaba inevitavelmente por desaparecer. É nada. Apenas questão de tempo. Mas o bem frutifica. Amplifica-se como grão de mostarda. Fermenta no coração dos homens amor, paz, solidariedade e justiça. Por isso os que desfrutam do reconhecimento da sociedade exibem em suas biografias mistura entre si e a busca do bem comum. Não se pertencem. Convertem-se em legado que se transmite às novas gerações. Seus exemplos permeiam o caráter, os sonhos e as esperanças de uma nação. Sobrepõem-se às limitações do tempo. São assim atemporais.

Imagino a circunstância em que Ernest Renan pisou o chão da Acrópole em Atenas. Em suas “Recordações da infância e juventude” ele diz que o céu era azul. Infinitamente belo e azul. Das ruínas do Partenon e do Erectéion pareciam ecoar cânticos eternos. Ao chegar em seu interior, sua mente não conseguia esquecer Péricles e seu discurso, sempre atual, no sepultamento dos heróis da guerra do Peloponeso. Eis, no século V antes de Cristo, exemplar e genuíno compromisso do homem público: “Entre nós não há vergonha na pobreza. Mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la ou eliminá-la”. Na cultura ocidental, a “Oração sobre a Acrópole”, de Renan, é um dos mais primorosos textos. Alicerce do humanismo e ode à humanidade. Giovanni Papini considerou-a a exortação mais pungente da cultura ocidental. André Malraux, em “As vozes do silêncio”, intitulou-a síntese dos valores culturais da humanidade. Enquanto Carlos Lacerda a traduziu, concebendo genial e peculiar introdução, que intitulou “Guia da Oração da Acrópole”. Ela enfeixa o sentido e a substância do que se universalizou como civilização. Em todos os povos e culturas.

Entretanto, atos insólitos e desprimorosos muitas vezes maculam o conceito e a imagem de uma nação, um povo e uma cultura. Se houve um homem inquestionavelmente digno no Brasil, personagem admirado internacionalmente no seu tempo, esse foi D. Pedro II. Deposto, recusou pensão do governo republicano. Vivia modesta e estoicamente em Paris, num hotel que, nos padrões atuais, seria de três estrelas. Faleceu em 5 de dezembro de 1891. O presidente da França à época, Sadi Carnot, decretou luto oficial e lhe prestou honras de Chefe de Estado. O féretro saiu do Pantheon para a estação ferroviária, seguindo então para Lisboa, onde foi sepultado. Lamentavelmente o governo brasileiro expressou seu desagrado pelas homenagens prestadas ao nosso último imperador. Manifestação rude, grosseira, mesquinha e estúpida . O governo francês respondeu à altura: reverenciara um cidadão do mundo, detentor da comenda da Legião de Honra em seu mais elevado grau e distinção. Jornais da Europa, dos Estados Unidos, do Egito e da Índia destacaram sua vida e seu legado. O jornal londrino “The Herald” registrou que “numa outra era, e em circunstâncias mais felizes, ele seria idolatrado e honrado por seus súditos e teria passado para a história como Dom Pedro, o Bom”. E o “The Tribune”, em editorial, ressaltou que “seu reinado foi sereno, pacífico e próspero, convertendo o Brasil em país modelar nas Américas”.  

A gente do povo, simples, humilde, pura, capta como ninguém os sentimentos de uma nação. Foi assim no sepultamento de Getúlio Vargas, naqueles traumáticos, sombrios e penosos dias de agosto de 1954. Após o discurso de Oswaldo Aranha e antes da oração comovente de Tancredo Neves, uma velha de quase noventa anos, negra, digna e altiva, recita-lhe uma poesia de “adeus” e fala sobre “orfandade do povo”. Era a professora que o alfabetizara. De todas as homenagens que prestaram a Juscelino Kubitscheck, talvez a mais autêntica tenha sido a de um “candango” (trabalhador nordestino na construção de Brasília). Disse pouco, mas silenciou todos com suas palavras: “Pouco tenho a lhe dizer. Somente que o amor e a gratidão do povo não morrem. São dádivas dos céus. Você vive na paz de Deus e no amor do Brasil”.

O Brasil possui incontáveis exemplos de vida pública digna. Inspiração para superar seus problemas. Especialmente agora.  Nossa História foi construída por esses homens, que interpretaram o melhor dos nossos sonhos, ideais e esperanças. Convém lembrar profética exortação de Franklin Roosevelt, em sua posse (1933), ante circunstâncias dramaticamente adversas: “nada temos a temer, senão o próprio medo”. Oswaldo Aranha foi, entretanto, notável síntese de homem público no Brasil: político, diplomata, Ministro das Relações Exteriores, da Justiça e da Fazenda (duas vezes). O livro “Oswaldo Aranha – a estrela da Revolução” o dimensionou: “Sem ele, é provável que a Revolução de 1930 jamais tivesse ocorrido…Sem ele, tampouco o país, ainda rural e atrasado, teria sido capaz de projetar-se no cenário turbulento da Segunda Guerra, nem de livrar-se de uma ditadura prolongada que se recusava a encerrar seu ciclo. Sua versatilidade fez dele um político regional que perdeu as origens e que acabou se deslocando para a frente econômica e a alta diplomacia”. Ele próprio assim se definiu: “Convivi com os maiores homens do meu tempo, participei dos acontecimentos maiores de todos os tempos e com eles e deles, representando o Brasil, nunca cedi, nunca transigi e nunca concordei senão para o que achei ser o bom, o progresso, o engrandecimento do meu povo, na guerra, como na paz”.  

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