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Perfeito

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Andreia Clara Galvão – Psicóloga

Apalavra “perfeito”  provem  do latim. “perfectu(m)”, que contém o prefixo “per”  que significa «ao longo de», e “fectu(m),”  relacionado com o verbo facere, que está na origem do verbo fazer. O perfeito tem a ver, assim, com o que surge ao longo do fazer.  Então, no perfeito resplandece  a vida  e suas forças, fazendo-se. A vida pois, acontecendo… Isso, de algum modo, contraria a ideia do suprassumo, do que não deixa margem para nenhum erro ou engano, não é leitor?

Retomo uma historia que já lhe contei, mas agora para pensar a ideia do perfeito. Lembra? Ei:la: Ele  tinha olhos escuros. Quase pretos. Olhos profundos e fortes. Talvez o olhar mais vivo, mais vigoroso que eu já pude ver. Falo  de Um Menino com o rosto muito  deformado. Um Menino quase monstruoso. Se é que tal adjetivo pode caber em algum menino. Mas era essa a primeira impressão que ele causava em quem o via. Sua cabeça era enorme e disforme. E continuaria crescendo desproporcionalmente, em diferentes direções, como caroços grandes por todo o crânio. Ele tinha uma doença muito grave e rara, que fazia seu crânio crescer até um ponto incompatível com a vida. A pele da face estava a tal ponto distendida, que seus olhos não se fechavam mais, nem mesmo quando dormia.

Por causa dessa deformidade e do prognóstico de uma vida curta, fora abandonado pelo pai e depois pela mãe. Ambos assustados pelo horror de sua aparência. Uma avó tomou-o para si e fez o que ao amor compete fazer: acolheu-o. Simplesmente. Profundamente. Como quer que seja o ser amado, o Amor recebe-o. Não é mesmo?  Talvez um dos nomes da Beleza talvez seja o Amor. Há um ditado que diz: “Quem ama o feio, bonito lhe parece.” O amor inventa a beleza. Ou arranca-a, previamente existente, das entranhas do feio e do inóspito?

Na situação em que o conheci, todos corriam do Menino. Os colegas na escola, as crianças na rua. Deixou de estudar porque estava muito difícil a situação.Era inteligente. Muito. Talvez a Inteligência, quando na busca de solucionar enigmas, possa ser outro nome da Beleza. Talvez… Mas existem aquelas inteligências agudas que se voltam para produzir o horror… Essa criança, que há muito foi a óbito, ensinou-me o valor do improvável. Do que escapa às classificações. Quando o conheci, como todos que o anunciaram para mim, estava tomada de pavor e da rejeição que o estranho tende a nos colocar. Mas resolvi me aproximar.

O menino, pois, iniciou fazendo o que a mim, a seguir, competiria fazer. Questionar os rótulos. Ir mais além das evidencias. Apostar na beleza do encontro. Abrir as entranhas do estranho, na espera de que algo além da estranheza pudesse mostrar-se. Ou que vida operasse seus poderes de reinvenção.

Pois bem. Havia um espelho grande onde estávamos. Ele sentou-se de costas para o espelho e voltou-se para mim. Precisava resolver assuntos de rejeição. Precisava-se ali, no encontro comigo, fazer o  exercício que não estava conseguindo fazer nos grupos, junto aos colegas. Mas, justamente,  buscava conseguir faze-lo. Queria deixar-se ver por si mesmo e pelo outro, mais além das deformações.

Começou muito bem, o Menino.  Sua força nunca mais me saiu da memória. O vigor e a beleza do seu olhar também não. Dentro de um rosto deformado, o olhar precisava usar toda a vivacidade possível para fazer o outro, que no caso era eu, não se ater às deformidades. O seu olhar, então, era só saúde e disposição. Com seu olhar, forçou-me a deixar para trás, absolutamente atrás, o esgaçado dos olhos. “ Abaixo os rótulos”  Não foi o que ele me disse, mas foi o que escutei.  Depois, noutros encontros e conversas com ele, já nem contava exatamente o olhar, por que ele tinha muita historia para contar. E muito trabalho para fazer antes da viagem definitiva que ele sabia que ia fazer.

Talvez um dos nomes da beleza seja o perfeito, esse que só está pronto no momento em que olhamos e cuja perfeição se completa0 porque o olhamos.  Perfeito , então é  o que se mostra feito mas onde, justamente,  brilha a potência da vida se fazendo, da vida acontecendo.  Para além da beleza, num rosto deformadíssimo, justo lá: A beleza! Para além da perfeição, no coração do imperfeito, o perfeito da vida sendo acionado por Um Menino deformado. O Menino a nos lembrar que a vida é por fazer. Eis a sua beleza, sua potência, sua perfeição.

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