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Poder

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Dácio Galvão
O rito da Jurema Sagrada é cultuado nas periferias citadinas. A sua base foi calcificada nos sertões profundos do nordeste brasileiro. Aonde se encontra. Fundamentalmente motivada por elementos contributivos de povos originários, índios e negros, com recepções para a magia branca europeia, o catolicismo leigo e o espiritismo kardecista. Quando li o livro Meleagro de Luís da Câmara Cascudo um sentimento de pertencimento bateu forte. Os traços ancestrais de um dado ritmo, de reinos terrestres e encantados, da beberagem, da terra em transe, de estados divinatórios… Se revelaram. Distintos e petrificados numa construção oriunda de povos que tramaram por vias diretas ou transversas uma referência religiosa única. Gente oprimida. O curioso é que a essência da Jurema Sagrada, ciência fina, assim chamada por cultuadores, é sustentada num fulcro multiétnico de grupos humanos dominados econômica e culturalmente por séculos e séculos. Acontece que esse caldo grosso feito de plasmas diversos resiste e insiste na permanência. Impressionante seu vigor. Considerando os recentes avanços ocorridos justamente nessas populações mais vulneráveis com ações neopentecostais incisivas no que diz respeito ao fator conversão. Não é mole não!

A Jurema vem inclusive se refletindo nos trabalhos artísticos e devocionais de Maria Bethânia e da maranhense Rita Ribeiro. Mônica Salmaso a nosso convite fez no CD Toques & Cantares de Tibau do Sul – RN duas linhas. Uma saudando Mestre Carlos e a outra anunciando Mestra Dona Benedita, a Mestra Rainha. Linhas que nos foram informadas por Pantico, feiticeiro nascido e criado na localidade do Carcará. Bem antes José de Alencar no romance Iracema (1865) incorporou na personagem-título o segredo da fórmula mágica da bebida sagrada. Sabe-se que 5 etnias no nordeste ritualizam a Jurema:  Kiriris, Tuxás, Pankararé, Tupinambás, Atikun, Fulniôs, Xucuru-kiriri,  Kariris, Xocós. Cantos, danças, cachimbadas, falas sagradas conectam entidades, natureza, deuses e ancestralidades.

A atitude gnóstica é possibilidade inerente do humano que volta e meia se encontra consigo mesmo em refluxos de absorções místicas, esotéricas, religiosas. Dois exemplos no século XXI de escritores famosos: o franco-angelino Albert Camus e o norte-americano Allen Ginsberg um dos expoentes da Geração Beat. Deduz-se obviamente que essa maré alta e baixa dos sentimentos vastos espirituais se amoldam emergindo e submergindo em ciclos particulares.

Mário de Andrade pesquisou e registrou em partituras 16 linhas de Jurema no Rio Grande do Norte. Estão todas em solfas no livro Música de Feitiçaria no Brasil. Três delas foram receberam arranjos sinfônicos do maestro Gil Jardim regente da Orquestra de Câmara da Universidade de São Paulo. Jardim tem vasto currículo. Regeu orquestras pelo mundo afora: a do Brooklyn Academy of Music Symphony Orchestra (Nova Iorque), a Royal Philarmonic Concert Orchestra (Londres), a Camerata Mexicana (México), a Orquestra Regionalle del Lazio (Roma) e Orquestra de Camara Mayo ( Buenos Aires). A iniciativa do Projeto Nação Potiguar, da Fundação Helio Galvão / Escritório Candinha Bezerra, resultou na gravação do CD “Potiguar”, da Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte. O arranjo percussivo ficou por conta de Naná Vasconcelos que em 2011 venceu o Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de Música Regional ou de Raízes Brasileiras e eleito oito vezes o melhor percussionista do mundo pela revista americana Down Beat. Todas as faixas deste CD são de compositores nascidos na terra de Poti. As referências juremeiras demonstram a fixação de certo DNA, musical e linguístico, circulando na corrente sanguínea da música brasileira. Assim como em Milton Nascimento há elementos do canto gregoriano, da liturgia católica romana.  

O universo simbólico da Jurema é cultuado em Natal nas comunidades de matrizes africanas de forte influência do Candomblé. Há 10, 12 anos atrás conseguimos documentar sonoramente (CD Pontos de Jurema) tendo a colaboração do antropólogo Luiz Assumpção, alguns dos mestres juremeiros locais: Geraldo do Caboclo, Geraldo Guedes, José Clementino e Babá Karol. Num  artigo sobre este trabalho Rita Amaral, Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo assinalou: “Vários “pontos” reiteram que a Jurema é um “lugar” de onde se vem e/ou para onde se vai, preservando a psicanalítica ambiguidade do Outro como Eu, do qual múltiplas dimensões se abrem pelo efeito da jurema: o eu humano, o eu divino, o eu corpo e o eu espírito, o eu mestre, o eu aprendiz, o eu que chega e o eu que parte, o eu indígena, o europeu, o eu negro. O eu brasileiro, amalgamado a tantos outros, cujo processo de formação a jurema tem a capacidade de evocar”.

A trajetória simbólica do rito, dos mestres, espíritos encantados, seus reinos, suas ervas nos permitem identificar que a sabedoria espiritual está a serviço da autopreservação da cultura e da soberania. Quando se discute no Brasil o abafa cultural institucionalizado as forças latentes libertadoras não hegemônicas liberam pela via da dança, do cantar e do espiritualizar energias capazes de sustentar a veemência do identitário. O formativo, o crucial para continuamente fazer valer a diversidade necessária do mundo plural.

Está saindo do forno o cantar do meu texto “EU”. Ufano-celebrativo, diz: Sou caboco da ciência fina / Sou o Outro / Eu sou negro, indígena. / Brasileiro juremeiro / Na terra mar no ar / Saudando Babá Karol e Zé Clementino. / Vou fumar no meu cachimbo / flor folha semente / Punir e encantar. / Salomão, Saraputinga / Alegria para amar / Salve o Juremá! Saindo da fornalha e vibrante nas vozes femininas e negras da Banda Didá. Retumbante nos batuques. Tambores primevos.

Mário e Câmara deram seus recados etnográficos. Não devemos esquecer que a revolução estética-literária encampada pelo Modernismo do século passado se apropriou de elementos primitivistas e fez a virada que fez. E ainda vem fazendo. Não se entende o Brasil sem ler os “Andrade”. Desdobramentos para sempre. Benedito Nunes complementou-os filosoficamente. Estudou o manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald  em ensaio clássico constatando que “os tópicos do exotismo, tais como o ócio, a comunhão fraterna, a sociedade dadivosa, a liberdade sexual e a vida edênica, transformam-se em valores prospectivos” e “ligam a originalidade nativa aos componentes mágicos instintivos e irracionais da existência humana, ao pensamento selvagem portanto…”

Decerto há de se convir que para operar o desmonte cultural no país o buraco é mais embaixo. A pauta de comportamentos, de costumes quem dita mesmo é o povo! 

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