quinta-feira, 25 de abril, 2024
32.1 C
Natal
quinta-feira, 25 de abril, 2024

Preconceitos, medos e desafios: a LGBTfobia no futebol do RN

- Publicidade -
Ícaro Carvalho
Repórter
O jogo está tenso. O jogador perde uma boa oportunidade e manda a bola para fora. Tiro de meta vai ser cobrado e logo se escutam os gritos de “bicha” quando o goleiro vai bater o tiro de meta. Essa expressão, que ainda ecoa em algumas arquibancadas dos estádios de futebol do mundo, tem virado debate sobre a legitimidade e a discussão sobre a homofobia no futebol tem ganhado novos contornos nos últimos anos. No Rio Grande do Norte, a expulsão de um membro de uma torcida organizada, após vídeo vazado, reacendeu o debate da LGBTfobia no esporte mais popular do país.
As imagens ganharam as redes sociais e a vítima foi expulsa de uma torcida organizada do ABC, que, em nota, alegou não querer se vincular a “qualquer escândalo do tipo”. A nota logo foi apagada e outra chegou a ser publicada afirmando que a exclusão do torcedor se deu pelo fato dele ter aparecido no vídeo e não pelo conteúdo das cenas.
A Seleção Brasileira já foi punida em Natal, quando atuou na Arena das Dunas em jogo contra a Bolívia pelas Eliminatórias para a Copa da Rússia
Natal já tinha aparecido, internacionalmente de forma negativa, com cenas homofóbicas. O Brasil foi punido pela FIFA, pelas palavras preconceituosas da torcida, na Arena das Dunas, no jogo entre a seleção brasileira e a Bolívia, em 2017. À época, a CBF foi multada em 25.000 francos suíços (cerca de R$ 83 mil) por gritos de “bicha” no estádio da cidade natalense.
No mês em que se comemora o Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, a reportagem da TRIBUNA DO NORTE ouviu especialistas, autoridades e torcedores de grupos LGBTs para entender esse fenômeno no futebol. Algumas atitudes e determinações de entidades internacionais têm tentado coibir manifestações homofóbicas nas arquibancadas, mas mesmo assim, a situação ainda é presente nos estádios. Alguns torcedores, inclusive, veem nos xingamentos algo como “natural” ou “normal”.
A torcedora do ABC, Talita Santiago, 19 anos, que frequenta estádios há pelo menos 10 anos, comenta que é comum ver gritos homofóbicos partindo das arquibancadas e que a situação, de certa forma, é naturalizada. A orientação sexual da abecedista, inclusive, faz com que ela tenha receio de se expressar como ela realmente é. “Não me sinto em liberdade, nunca escrachei minha orientação sexual no estádio, justamente por não me sentir segura”, comenta a estudante.
Em situação parecida está a torcedora do América, a arquiteta Mariana Brito, 27 anos. De forma enfática, ela diz que “não beijaria a namorada na arquibancada. Sei quem é totalmente diferente o que um homem gay sofre e o que uma mulher lésbica sofre. Já senti que as mulheres lésbicas têm um fetiche em cima delas. Num ambiente machista como o futebol, os homens vão ver as mulheres lésbicas como um fetiche sexual e pra eles vai ser ótimo. Iria me sentir vulnerável a piadas, convites, assédio. Isso é uma forma de repressão de eu não conseguir fazer o que normalmente eu faria em um lugar que eu me sentiria segura.”, disse.
Após gritos homofóbicos em Natal, CBF foi punida pela FIFA
Outro torcedor LGBT que comumente vai as arquibancadas é o operador de caixa Luzenildo Costa, 34 anos, torcedor do ABC. Ele diz que não se incomoda com os gritos homofóbicos direcionados a jogadores ou árbitros. Apesar disso, ele lamenta que a sociedade brasileira ainda esteja “verde” com relação ao debate sobre a liberdade sexual.
“Há lugares que são extremamente machistas, como o exército, futebol. Esses lugares são os mais difíceis de nos expressarmos. Não tenho receio de ir a um jogo, de ir a qualquer lugar. Mas, estando com um companheiro, não tenho coragem de entrar num estádio de mão dada com ele, quem dirá beijar. Justamente porque nossa sociedade é machista ainda e no futebol mais ainda”, comenta.
Há uma questão antagônica, de certa forma, em torcedores ouvidos pela reportagem. Por mais que façam parte do grupo LGBTs, alguns veem essas situações como “normais” e até praticam os xingamentos homofóbicos contra personagens do jogo. Aliado a isso, alguns citam que, em virtude do insulto ser “enraizado” na sociedade, as ofensas se refletem nas arquibancadas. “Alguma coisas foram naturalizadas com o tempo, mas isso não impede que possamos rever nossas atitudes. Eu não me incomodo de ouvir alguns tipos de xingamentos com a torcida ou juiz. Não é que eu ache certo, não acho certo. Mas ficou tão enraizado que passa despercebido. Comecei a desconstruir isso há pouco tempo”, analisa a torcedora do ABC, Ana Neves.

Clubes podem ser punidos
A homofobia nos estádios de futebol pode trazer punições aos clubes. É o que informa o promotor do Ministério Público do RN, Luiz Eduardo Marinho, responsável pelo cumprimento do Estatuto do Torcedor no RN. Segundo ele, há cláusulas na lei que preveem sanções às agremiações esportivas.
“O artigo 13 do estatuto prevê a penalidade administrativa sem prejuízo de reparações civis e penais também, quando da identificação do torcedor. O código já prevê isso. O que falta é controle estatal. É verificação, investigação e punição. O estatuto prevê que, se identificado gritos homofóbicos por parte de setores de torcidas organizadas, ela pode sofrer a penalidade de afastamento por até cinco anos. Mas tem que ser feita a identificação, procedimento”, comenta.
Medida da CBF prevê que árbitros possam parar jogo em caso de situação homofóbica
O promotor explica ainda que, em caso de xingamentos, já existe recomendação da CBF para o juiz interromper a partida, relatar o fato ao delegado do jogo e escrever a situação na súmula. “A partir disso, poderão ser punidos, através de recomendação ao TJD, no caso de jogos do Estadual: clube mandante se for identificado que partiu de sua torcida; torcida organizada, do mandante ou visitante, e a pessoa física desde que individualizada sua conduta”, salienta.  “Isso tem que ser relatado pelo juiz, sumulado e encaminhado para o procurador de justiça aplicar o estatuto do torcedor. Esse é o caminho”, completa.

Ações nas redes sociais
Os clubes têm tentado promover ações nas redes sociais.  No último final de semana, ABC e América protagonizaram ações em suas redes sociais contra a LGBTfobia. No Alvirrubro, utilizando a hashtag #AmericaParaTodos, um vídeo com torcedores LGBTs foi publicado nas redes e repercutiu bem entre os americanos. No Alvinegro, a campanha “ABC de Todos” promoveu fotos de alvinegros com a bandeira arco-íris, que representa o movimento. O ensaio foi feito no gramado do Frasqueirão.
Torcedores avaliam que os clubes podem ser mais incisivos. “Acho que os clubes poderiam fazer um pouco mais. Soltar nota no dia internacional é bacana, legal. Mas acho que poderiam soltar outras notas. Não deixar para falar sobre o assunto no dia 17 de maio”, analisa Luzenildo Costa.

Especialistas rechaçam cultura do “normal”
O antropólogo Édison Gastaldo, autor de três livros e pesquisador há 16 anos, cita que a presença de torcedores gays nos clubes não é “nenhuma novidade” no Brasil. Professor do CEP/FDC, no Rio, ele cita as torcidas “Coligay” e “Flagay”, de Grêmio e Flamengo, nos anos 70. 
“Se a ideia é que o futebol é para todo mundo, que no Brasil todo mundo tem seu time, pode imaginar que o padre tem seu time, que o soldado e o gay vão ter seus times. Todo mundo torce. Futebol é para todos, sem exceção”, comenta. Ele avalia ainda que apesar de xingamentos estarem presentes nos estádios, historicamente, isso não significa dizer que precisa ser naturalizado.
“Eu coloco no mesmo patamar que o racismo. É cultural, é. Mas nem tudo da cultura está certo. Tem coisa na cultura que está errado. Violência, racismo, pai bate no filho, marido bate na mulher, mas isso não está certo. Não é porque uma coisa, aspas, faça parte da cultura, que tenhamos que aprovar, ainda mais que tenhamos que nos manifestar em defesa de algo que sabemos que está errado”, diz.
De acordo com a socióloga Edite Rafaeli Sobreira da Silva, que estudou as mulheres no futebol em Juazeiro do Norte, ela observou preconceitos e comportamentos sexistas entre os homens com relação às mulheres, a situação fica ainda mais acintosa nos casos LGBTs.  “Ainda estamos num ambiente social machista, apesar de várias conquistas. Há machismo por parte das próprias mulheres, é algo cultural, enraizado na nossa vivência cotidiana. O preconceito com os LGBTs é de forma mais ampliada. Pude observar que as mulheres presentes são influenciadas pela cultura machista”, analisa. “Falo pela minha experiência: fui a estádios de futebol e pouquíssimas vezes presenciei, conversei com pessoas LGBTs”, completa.
- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas