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Quando a “gentinha” ganhou casa

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MORADOR - José Francisco foi um dos primeiros a chegar

Um conjunto habitacional voltado para atender a pessoas de baixa renda. Hoje, a idéia pode ser ultrapassada e superada, posto que o plano já foi muitas vezes copiado. Ainda hoje é (às vezes só em promessa). Mas em 1966, há 40 anos, tentar algo do tipo não tinha outra classificação. Era pioneiro. A história confirma. E não só pela intenção de atender os mais necessitados. Outros aspectos enlevam a história.

Primeiro porque tudo foi feito por um governador de um Estado nordestino, Aluizio Alves. Segundo que – para ter o dinheiro das casas da “gentinha” – foi preciso ir aos Estados Unidos falar com o presidente John Fitzgerald Kennedy (1917 – 1963). E terceiro: para cumprir a promessa, o governador enfrentou o governo brasileiro. O presente comprova que o esforço valeu a pena. A Cidade da Esperança completa 40 anos dia 31 próximo, e continua a crescer.

O projeto da Cidade da Esperança surgiu em 1962, um ano após Aluizio Alves ter sido eleito para o governo do Estado. A idéia de construir casas para a “gentinha” fazia parte do Plano de Habitação Popular, concebido para reverter o déficit habitacional potiguar. Em 1966, 31% das habitações existentes em Natal eram de taipa. O apelido de “gentinha”, referindo-se aos mais necessitados, surgiu durante a campanha eleitoral de 1960.

Irritado com os grandes comícios do “cigano”, Dinarte Mariz disse que só participavam desses encontros “gentinha” e crianças. O projeto da Cidade da Esperança foi posto em prática pela Fundação de Habitação Popular (Fundhap), da qual o primeiro presidente foi o atual prefeito de Parnamirim, Agnelo Alves. A intenção do Plano era construir três mil casas, com recursos da ordem de 1,6 bilhão de Cruzeiros (moeda da época). A área para realizar o projeto foi comprada ao casal Gerold Geppert pelo governo estadual.

Na época, na Zona Oeste de Natal, uma das únicas habitações era um “leprosário” (hospital onde eram recolhidos os hansenianos), atual Hospital São Francisco. Daí se tem uma idéia de quanto a região era considerada distante, desabitada. Para garantir dinheiro à construção do novo bairro e outros projetos de seu governo, Aluizio Alves, iniciou a batalha para obter recursos com a Aliança para o Progresso, organização proposta pelos EUA para ajudar os países da América Latina.

Dificuldades com a Aliança para o Progresso

Havia um convênio dessa organização assinado com a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), mas os processos não estavam andando como deveriam. “Percebi logo a resistência daquele órgão (Sudene) à Aliança. Da parte dos altos funcionários, restrições de ordem ideológica”, escreveu Aluizio Alves no livro “O que eu não esqueci”.

Diante da estática da Sudene, o governador resolveu ir a Washington, falar com a direção da Aliança. Não conseguiu. O presidente da organização estava de férias na Austrália. Restou a Aluizio Alves pedir ajuda ao embaixador Roberto Campos, que propôs uma audiência com o presidente Kennedy. Ele se encontrava em campanha pelo interior dos Estados Unidos. Apesar da dificuldade, Roberto Campos conseguiu o encontro com o presidente norte-
americano.

Na conversa com Aluizio Alves, Kennedy tomou conhecimento da situação enfrentada no Rio Grande do Norte e resolveu convocar o presidente da Aliança, Teodoro Moscoso, para resolver o problema. “Um mês depois, no palácio em Natal, assinávamos o programa Aliança – Rio Grande do Norte, com recursos de 25 milhões de dólares, para início imediato”, conta o ex-governador em seu livro. Apesar disso, as dificuldades não estavam vencidas totalmente.

Construção das casas começou em 1964

A construção da Cidade da Esperança começou em novembro de 1964, através de uma doação de 400 milhões de Cruzeiros, feita pela Aliança para o Progresso. Em janeiro de 1966, na conclusão da administração Aluizio Alves, a Cidade da Esperança foi uma das obras que fazia parte do “calendário de inaugurações”. Em 9 de janeiro de 1966, uma reportagem da TRIBUNA DO NORTE mostrava que onde antes tudo era deserto, mato, estavam surgindo 570 casas.

Também foi dito que a construção “seguia no ritmo de Brasília”. Inicialmente, a inauguração do conjunto estava marcada para dia 30 de janeiro, último dia do governo de Aluizio Alves. Dia 29 de janeiro houve mudança e a festa ficou para dia 31, data que marca também a festa da padroeira do bairro, Nossa Senhora da Esperança. As famílias foram instaladas em grupos de 50 pessoas. Na época da inauguração, o presidente da Fundhap era José Dias, hoje deputado estadual pelo PMDB.

Agnelo Alves, primeiro presidente da fundação, deixou o cargo por conta da sua eleição para prefeito de Natal. A candidatura dele inclusive foi lançada numa visita às obras que estavam sendo feitas em Cidade da Esperança. O bairro foi oficializado em 9 de junho de 1967, pelo decreto 1.643. A obra foi continuada pela administração do Monsenhor Walfredo Gurgel, estendendo-se até 1969. Nos anos seguintes, o bairro começou a receber empresas e outros equipamentos urbanísticos.

Hoje há no bairro a sede da Petrobras, um batalhão de Polícia de Trânsito, a sede da Polícia Federal e a Rodoviária Nova, que chegou ao bairro em setembro de 1981. Segundo levantamento da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (Semurb), o bairro conta hoje com uma área de 182,90 hectares, 4.742 domicílios particulares permanentes e uma população de 20.235 habitantes. A projeção inicial – segundo o governo (em 1965) era de 3.500 moradores.

Sudene dificultou início da construção

As dificuldades em conseguir os recursos para a construção da Cidade da Esperança não chegaram ao fim depois da ajuda obtida por Aluizio Alves junto ao presidente John Kennedy. Após a viagem aos Estados Unidos restou enfrentar a resistência dentro do governo brasileiro. Em reunião com o embaixador Teodoro Moscovo, o superintendente da Sudene, Celso Furtado, definiu que todos os convênios seriam intermediados pelo órgão.

A notícia significava que nenhum convênio poderia ser feito diretamente entre estados brasileiros e a Aliança, como tinha sido pensado o acordo que daria ao Rio Grande do Norte 20 milhões de dólares. Novamente, Aluizio Alves teve de viajar para tentar assegurar os recursos. Dessa vez foi a Brasília falar com o então primeiro ministro do Brasil, Tancredo Neves. A solução encontrada foi a produção de uma Resolução de Gabinete que liberasse o Rio Grande do Norte da censura imposta pela Sudene.

Tancredo Neves apoiou Aluizio porque entendeu como pioneira sua iniciativa de ir aos Estados Unidos e a construção do conjunto habitacional para as pessoas de baixa renda. Sabendo da Resolução, Celso Furtado procurou Tancredo Neves mas não conseguiu desfazer a arrumação obtida por Aluizio Alves. Por fim, ficou acertado que o convênio excepcional com o Rio Grande do Norte seria mantido, mas que o dinheiro seria liberado em partes.

Em reunião, Aluizio Alves e Celso Furtado definiram que o dinheiro seria usado primeiro nos programas de habitação e educação. Finalmente, o problema estava resolvido. No livro “O que eu não esqueci”, Aluizio Alves conta que pelo acertado com a Sudene, ficaram previstas a construção de mil salas de aula para os institutos Churchill e Kennedy; o treinamento de 4 mil professores ; e a construção da Cidade da Esperança.

De maneira triste, o ex-governador registrou que com a morte de Kennedy começou a morrer a Aliança para o Progresso “sepultada no Brasil com o golpe militar de 1964”. Falando sobre a lição que aprendeu naqueles ano de “esperança”, ele acrescentou: “Quem pensa que governar é fácil está inteiramente enganado. É preciso ter não só imaginação, capacidade de trabalho e competência, mas também não perder o ânimo ao encontrar, pelo caminho, as pedras da resistência às mudanças, oposição invejosa, acomodação burocrática, e imprevistos outros de toda a natureza”.

Moradores lembram como era o conjunto

José Lopes da Silva, 74 anos, lembra bem. “Quando cheguei aqui isso aí (aponta para a Rodoviária Nova) era tudo um tabuleiro”. Sua mulher, Marlene Maciel da Silva, 65, também tem recordações: “Assim que cheguei aqui, gostei. Não tinha nada aqui. Não tinha luz, não tinha água. A gente tirava água do chafariz. Mas era muito lindo. Na época do frio ficava tudo cerrado. À tarde, a gente subia nos morros”.

Seu Lopes completa, brincando: “Antigamente, lá nos morros, a gente ia, hoje eu não estou mais trepando… Nos morros” (risos). Falando sério, casados já há 47 anos, eles foram também uma das “gentinhas” que encontrou na Cidade da Esperança um local para viver com tranqüilidade e num imóvel próprio. A chegada à Cidade foi em março de 1967. Seu Lopes foi delegado do bairro e lembra que mudou-se para o bairro porque sua mulher foi sorteada após inscrever-se “nas casas da Aliança para o Progresso”.

O sorteio de certa forma salvou o casal porque eles moravam no bairro das Rocas de aluguel num local que sofria constantes inundações quando chovia em Natal. Quando eles chegaram à Cidade da Esperança, algumas casas ainda estavam sendo concluídas. Além da casa, seu Lopes também comprou um boxe no antigo mercado público do bairro e mantém lá o Bar do Lopes. Nem ele nem sua mulher pretendem sair do bairro e afirmam que o local sempre foi bom de morar. “Eu pretendo sair daqui. Sair daqui para o cemitério”, brinca seu Lopes.

Quem também pensa assim é o alfaiate José Francisco da Silva, 76 anos. “Eu só saio daqui para o Bom Pastor (o cemitério), onde já está um filho meu”, diz. Ele chegou ao bairro em março de 1966, logo após o início do povoamento. Era difícil? “Era. Não tinha água. Era um carro-pipa que trazia. Aqui era o deserto maior do mundo. Era tudo duna. Tinha até umas vaquejadas lá para dentro”. O alfaiate mantém-se trabalhando num cômodo de sua casa, na rua Catolé do Rocha.

“José Alfaiate”, como é conhecido, diz que as dificuldade foram maiores porque quando foi para a Cidade da Esperança, ficou desempregado por dois anos. Outra particularidade é que ele era “fechador”, apelido aos que eram partidários de Dinarte Mariz, adversário de Aluizio.”Eu não votava nele, mas não que eu não gostasse. Ele foi um bom governador”, diz.

Entrevista / José Dias

O ex-governador do Estado, Monsenhor Walfredo Gurgel, morreu sem saber um fato sobre o bairro que também ajudou a construir, a Cidade da Esperança. Um pequeno segredo que só agora, 40 anos após, está sendo revelado. O homem que guardou sigilo por tanto tempo é o deputado estadual José Dias, que em 1966, com 25 anos de idade, foi presidente da Fundação de Habitação Popular (Fundhap), órgão responsável pela construção do bairro. Na entrevista abaixo, além de contar que pode até ter cometido uma ilegalidade (“mas que não foi pecado”), ele relembra um pouco da história da Cidade da Esperança e explica porque a obra foi um desafio.

TRIBUNA DO NORTE: Como era Natal naquela época?
JD: A região onde hoje está localizada a Cidade da Esperança era praticamente deserta. O que tinha por lá? Era apenas um leprosário que – por uma questão equivocada de saúde pública – era mantido longe do aglomerado urbano, longe de Natal. E ali foi adquirida uma área no governo de Aluizio Alves. E foi apresentado um projeto à “Aliança para o Progresso”. Por sinal muito amplo, em torno de duas mil casas.

• Havia dúvidas com relação à conclusão desse projeto?
JD: Claro que sim. As idéias pioneiras são recebidas com desconfiança. Depois, o povo sofre muito com promessas que não são realizadas. Isso aí é uma prática que infelizmente não acabou. E hoje permanece nesses governos que estão por aí de maneira vergonhosa.

• Qual outro diferencial da Cidade da Esperança?
JD: As primeiras casas foram financiadas a fundo perdido. O dinheiro não era restituído ao governo americano. Era doação mesmo. E, portanto, nós só tínhamos que cobrar o valor de reposição. As prestações eram baixíssimas. Era tanto que o Fundo de Reposição não funcionava bem. Além do mais fizemos coisas que acho que não se faz mais. Os canteiros das empreiteiras foram transformados no mercado público. Nós fizemos isso com apoio das empreiteiras. Com recursos específicos da Fundação nós fizemos um teatro de arena, um clube e nós fizemos a Igreja de Nossa Senhora da Esperança. Com relação a ela há um detalhe que eu acho muito importante de se frisar. É um fato histórico que nunca foi revelado…

• O quê?
JD: Quando nós já estávamos construindo a segunda fase do conjunto, durante o governo do Monsenhor Walfredo Gurgel, já havia a idéia de construir uma igreja católica e por conta do nome ser Cidade da Esperança seria de Nossa Senhora da Esperança. Mas não houve recursos para que essa igreja fosse edificada. E quando o monsenhor assumiu, ele me manteve na presidência da Fundação e eu fui a ele com essa idéia. Monsenhor Walfredo Gurgel disse imediatamente: ‘Não, não e não. Porque eu sou padre e não posso permitir o uso de recursos públicos para a construção de uma igreja’.

• O que o senhor fez então?
JD: Como era subordinado a ele, não discuti. Mas botei para funcionar a imaginação e constituímos uma comissão com senhoras que representavam a sociedade. Elas tinham a incumbência de angariar os recursos para a obra. O projeto, a Fundação fez. E o que ocorre? Pior do que hoje, naquela época havia muito mais dificuldade para obter recursos privados para obras desse tipo. A verdade é que os recursos adquiridos pelas senhoras não chegaram a representar 2% do necessário. Então, o que foi que eu fiz? Eu usei – contrário à determinação do Monsenhor Walfredo Gurgel – recursos da Fundação e fiz a igrejinha.

• E ela está lá até hoje…
JD: E ele morreu sem saber que o dinheiro era da Fundação. Eu sei é que ele está lá no céu satisfeito porque a igreja foi construída e eu talvez tenha feito também uma grande obra porque o desobedeci, mas para servir a Nossa Senhora. Eu cometi – vamos dizer assim – uma ilegalidade, mas que não foi pecado. Eu fiz pela minha alma.

• Foi um desafio participar da construção “Esperança”?
JD: Foi um desafio porque era um desafio participar do governo de Aluizio Alves. O governo de Aluizio realmente tinha em qualquer setor esse caráter inovador. Ele não apenas era uma grande fábrica de idéias revolucionárias e criativas como também tinha a coragem de enfrentar os problemas.

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