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Quando floresce o amanhã

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Cláudio Emerenciano [Professor da UFRN]

As civilizações desmoronam quando perdem consciência dos seus fins. Os sonhos sempre alimentaram a busca da paz, da justiça e da liberdade. Caminhos de aprimoramento da condição humana. A miséria e a injustiça degradam o homem e a humanidade. Desvirtuam seus valores. Subvertem o sentido da vida. Eis por que toda e qualquer criação humana tem substância quando engrandece os sentimentos e as relações das pessoas entre si. A indignação é um ato de rebeldia às injustiças. É uma tentativa de exorcizar o desalento e o desespero. Ou, até mesmo, de desconfiança ante qualquer perspectiva de mudança. Convém lembrar episódio trágico, contundente e degradante. Ocorreu na seca de 1958. Jornalistas franceses visitavam o Nordeste. O grupo era liderado por famoso jornalista, autor do best-seller “O desafio americano”: Jean-Jacques Servan-Schreiber. Seu cicerone era Josué de Castro, médico, nutricionista, sociólogo e antropólogo. Universalmente conhecido por três livros: “Geografia da fome”, “Geopolítica da fome” e “Sete palmos de terra e um caixão”. A comitiva chegara aos arredores de Caruaru, defrontando-se com o “forno do lixo”. Todos, estupefatos, viram mulheres, homens e crianças disputando restos de comida com aves de rapina. Uma mulher, esquálida, provavelmente de meia-idade, cuja face era expressão síntese do desespero, da dor e da desilusão, parecia liderar os catadores. Todos a ela se dirigiram, perguntando-lhe, através do intérprete, que era o próprio Dr. Josué, o seguinte: “Vocês não têm vergonha em disputar comida com animais?”. A resposta foi fulminante, como se fosse epígrafe de uma tese sociológica: “Quem tem fome pode ter vergonha de quê?”. A frase correu o mundo. Foi uma espécie de clamor dos deserdados.

Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Paulo Prado, Ronald de Carvalho, Oliveira Viana, Caio Prado Júnior, entre outros, consagraram o conceito de “civilização brasileira”. Apesar de antagonismos, que ainda hoje revelam miséria e desigualdade social, não se pode ignorar valores, idéias, aspirações, o ser, o sonhar e o querer dos brasileiros. Cascudo, por exemplo, em “Cinco livros do povo”, identificou no imaginário da cultura popular, principalmente no interior nordestino, percepções, fantasias e tradições procedentes da Provença medieval (França). Esses valores culturais nos chegaram através do processo de colonização. As civilizações são interdependentes. Gore Vidal, em “Criação”, identificou fantásticos vínculos e extraordinárias semelhanças entre as civilizações da Grécia, da Pérsia, da Índia e da China cinco séculos antes de Cristo. O “habeas corpus”, hoje consagrado no mundo civilizado, nasceu na Inglaterra em 1215. Ali começou a ruir o poder absoluto dos soberanos. Circunstâncias rigorosamente reconstituídas por Walter Scott em “Ivanhoé”. O romance revisitou tradições, valores, hábitos e costumes da Idade Média.

 O Jardim de Luxemburgo, em Paris, à margem esquerda do Sena, é uma espécie de portal da Sorbonne (nome tradicional da Universidade de Paris). Lá está uma estátua de corpo inteiro de Voltaire. E, no pedestal, sua máxima mais célebre: “posso não concordar com nenhuma das vossas palavras, mas defenderei até à morte o vosso direito de pronunciá-las”. Esse é um dos postulados da civilização em âmbito universal. Assim todos os homens se igualam. Ninguém se exclui dos direitos fundamentais da pessoa humana. Apesar de violações continuadas em todos os continentes e culturas. A construção do amanhã, em todos os tempos, tem um ânimo espiritual, ético e moral. É a grandeza humana. Sua identidade e convergência com Deus. Fundamento e caminho de sua ascensão permanente. Mas o homem não detém essa grandeza se a sua dignidade não for plenamente cultivada e respeitada. Seu usufruto não se circunscreve às coisas materiais, as quais são relevantes, indispensáveis e irrenunciáveis. A felicidade humana é como um grão que germina sem cessar. Floresce e se expande como a própria vida. Não tem limites. Romain Rolland (Nobel da literatura), em seu magnífico “Jean-Christophe”, ainda hoje ode à paz e à harmonia entre os homens, disse que não se pode imaginar a vida sem amor. Talvez, nos nossos dias, a crise universal decorra de perda da ampla visão do amor. Pois é impossível conhecer o amor, em termos individuais e coletivos, enquanto a tantos e tantos se nega o direito de vivenciá-lo e desfrutá-lo. 

Em suas “Recordações da infância e juventude”, Ernest Renan revelou que o céu era azul, infinitamente belo e azul, ao visitar a “Acrópole” em Atenas. Das ruínas do Partenon e do Erectéion pareciam ecoar cânticos eternos. Ao chegar em seu interior, não conseguia esquecer Péricles e seu discurso, sempre atual, no sepultamento dos heróis da guerra do Peloponeso. Eis, no século V antes de Cristo, exemplar compromisso do homem público: “Entre nós não há vergonha na pobreza. Mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la ou eliminá-la”. Na cultura ocidental, a “Oração sobre a Acrópole”, de Renan, é um dos mais primorosos textos. Alicerce do humanismo e ode à humanidade. Carlos Lacerda a traduziu, concebendo genial introdução, que intitulou “Guia da Oração da Acrópole”. Também aliciante e inimitável.

André Bonnard, em sua magistral “A civilização grega”, questiona o entendimento do que é essencial nas antigas civilizações e no mundo pós Segunda Guerra. Disse que o essencial não tem peso. Mas sentido. Como um sorriso, que alegra, desconcerta, atrai, vincula e une. Eis um exemplo milenar, senão bíblico. O homem se sente pago com um sorriso, qualquer que seja a circunstância. É algo a pensar…

A gente do povo, simples, humilde, pura, capta como ninguém os sentimentos de uma nação. Foi assim no sepultamento de Getúlio Vargas em 1954. Após o discurso de Oswaldo Aranha e antes da oração comovente de Tancredo Neves, uma velha de noventa anos, afro-brasileira, digna e altiva, recita-lhe uma poesia de “adeus” e fala sobre “orfandade do povo”. Era a professora que o alfabetizara…

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