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Quarto de despejo

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Ivan Maciel de Andrade                                                                                                           
Procurador de Justiça e professor da UFRN (inativo)

Muitos certamente não sabem quem foi essa extraordinária mulher chamada Carolina Maria de Jesus. A maioria talvez não saiba. Posso esclarecer, desde logo, que não se trata de nenhuma figura importante da música popular brasileira. Também de nenhum destaque do carnaval, como é o caso da porta-bandeira que abre com o mestre-sala o desfile das escolas de samba. Nem de astro de qualquer tipo de esporte. E muito menos, como pode alguém mais imaginativo supor, de uma deslumbrante modelo que brilhou nas passarelas exibindo a moda de grandes estilistas nacionais e estrangeiros. 

Ninguém precisa ir ao Google. Era uma mulher negra, pobre, empregada doméstica (cozinheira e lavadeira). Mãe solteira de três filhos. Morava numa favela chamada Canindé, perto do rio Tietê, em São Paulo.  Quando o dinheiro que ganhava não era suficiente, catava papéis e tudo o que nos lixões pudesse servir de alimento para sua família. Já tinha passado muita fome e não conseguira se livrar da miséria, apesar de ter começado a trabalhar ainda adolescente. Não chegou a completar o curso primário, mas gostava de ler e, também, de escrever registrando fatos de seu triste e difícil cotidiano.

Foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas na ocasião em que fazia uma reportagem sobre a inauguração de um parque municipal. Ele viu uma mulher negra discutindo com alguns homens e ameaçando “colocá-los em seu livro”. O jornalista interessou-se pelo livro que a mulher dizia estar escrevendo e acompanhou-a até à favela. Lá teve acesso aos “vinte cadernos encardidos que Carolina guardava no barraco”. Neles estava, já pronto, o livro “Quarto de despejo – diário de uma favelada”.

Publicado em 1960, vendeu cerca de cem mil exemplares em seis meses. Foi traduzido para 14 idiomas e editado em 40 países. Obteve excelente acolhida da crítica brasileira e do exterior, despertando enorme interesse em leitores de diferentes partes do mundo. Carolina de Jesus escreveu outros livros, sendo que o último deles – “O diário de Bitita” (como era chamada na infância) – foi publicado inicialmente na França, após a morte da escritora. “Quarto de despejo” continuou sendo o seu principal livro. É a narrativa de uma empregada doméstica, autodidata talentosa, que criou a voz literária com que transmitiu seus sofrimentos, lutas e esperanças para grande parte da humanidade.

Mas, meu Deus, estou falando sobre uma escritora que se consagrou aqui no Brasil e na Europa, nos Estados Unidos, na América do Sul, em vários continentes e que era, contudo, empregada doméstica. O que diria disso o mais importante discípulo brasileiro dos Chicago Boys que implantaram, à época de Pinochet, um desumano ultraliberalismo na economia chilena? Ultraliberalismo, diga-se de passagem, que está sendo hoje revisto após um período de turbulentos protestos populares. O que diria esse cidadão preconceituoso que já fez declarações depreciando as empregadas domésticas?

Carolina de Jesus poderia ter ido lançar o seu livro em alguma universidade americana. Não sei se com o dinheiro dos direitos autorais foi com os filhos conhecer a Disney. Mas continuou fiel à sua experiência de vida: dizia que o Brasil devia ser governado por alguém que já tivesse passado fome.

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