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Quem foi Miguelinho?

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Sanderson Negreiros
Escritor

O que resta, hoje, do nosso maior herói, no melhor sentido dado a esta palavra por Carlyle, na terra que lhe serviu de chão primeiro? Um colégio no bairro do Alecrim e uma rua, perdida na Ribeira, com seu nome. No entanto, ninguém, na nossa história, desde a colonização, teve uma morte, coroando sua vida, de maior dramaticidade, de maior beleza, do que ele.

Miguel Joaquim de Almeida Castro, nascido em Natal, e daqui saindo para o convento dos carmelitas, em Recife, aos 16 anos de idade, foi a figura central, a alma condutora da revolução de 1817, que apelidada por Oliveira Lima de “a revolução dos padres”, teve um papel e um significado, em termos nordestinos, tão grande, como a Inconfidência Mineira. Miguelinho, se estudado com percuciência, se revelará um novo Tiradentes; e os ideais que assomavam o movimento de 1817 eram os ideais também dos inconfidentes com características, talvez, mais revolucionárias: de aprofundamento e modificações sociais pedidas e requeridas.

A diferença, contudo, está em que Miguelinho foi esquecido quase de todo, se não fora a estola, com que morreu, não sobrevivesse, em um salão do nosso Instituto Histórico. Pernambuco, por exemplo, fez tudo que era possível para restaurar a memória e a ação de um Frei Caneca, também participante, embora modesto, de 1817, mas que veio a ser líder, mais tarde, da Confederação do Equador. Tiradentes nem se fala. É o herói brasileiro, por excelência, com todas as honras e todas as glórias.

E esse padre humilde e de ação silenciosa, que foi frade inicialmente, mas depois pediu ao Papa sua resignação da condição conventual e passou a ser padre, simplesmente? O que dele se conhece, se estuda, se discute? O que tem interessado de sua vida e de seu trabalho? Nada. Passou a ser um ilustre desconhecido no Rio Grande do Norte. Parece que empresta também seu nome ao prédio da Câmara de Vereadores. E quando esses mesmos vereadores fizeram uma homenagem a Miguelinho? Nunca. É assim que se faz nossa história e se cultuam nossos grandes nomes; ou nosso nome mais alto, nume e lume de nossa destinação histórica como povo e como estado.

Saindo de Natal para estudar no Recife, Miguelinho nunca mais voltou. Depois do convento do Carmo, foi estudar em Lisboa. Sua inteligência já o desafiava para grandes vôos. Na Europa, conviveu com os melhores ambientes e figuras da cultura. Brilhante, orador inesquecível, o bispo Azeredo Coutinho é nomeado para bispo de Olinda. E traz Miguelinho de volta ao Recife. E funda o Seminário de Olinda, centro inaugural da formação do Brasil cultural. Miguelinho é professor de Retórica.

As desavenças, na época entre brasileiros e portugueses cada vez mais se acentuam. O estamento colonizador, composto de funcionários e parasitas, que nada faziam, ou só faziam explorar o trabalho dos nativos, via impostos duríssimos, acabou criando uma situação inaceitável. E a conspiração começou, já para declarar a República, cortando os laços com Portugal, abolindo a escravatura e iniciando reformas sociais e econômicas no País. Era um ideário que se aprofundava na influência da Revolução Francesa e da Revolução Americana. De repente, por puro idealismo libertário, é proclamada a deposição do governante português, que reinava absoluto em Recife, e composto um governo provisório, de que Miguelinho foi o secretário geral. Foi, aí, que apareceu no Rio Grande do Norte o nome de André de Albuquerque.

Mas a revolução de 1817 foi logo abafada – e seus dirigentes presos. Entra, então, em cena, a grandeza de nosso padre Miguel. Enquanto os companheiros fogem, ele fica onde está. Ao lado da irmã Clara, morando em Olinda, passa a noite, que antecedeu sua prisão, rasgando os documentos que pudessem incriminar seus amigos de aventura. A irmã propõe que fuja também: “Não posso nem devo. Sei que vou ser preso. Mas preciso livrar meus amigos de castigos terríveis que vêm pela frente”.

Encarcerado num porão de navio, é levado para Salvador. Sem ver a luz do sol, convive com o escárnio e a miséria mais solvente, amarrado a ferros. Passa oito dias para, desse porão infecto, ser levado a julgamento.

E quem o julgará? O famoso Conde dos Arcos, general português reconhecido por sua violência. Arma-se o grande instante no Campo de Pólvora de Salvador.

O Conde dos Arcos, que condenara à morte os outros revolucionários, detém-se diante da figura de Miguelinho. E sentiu que, ali, havia uma personalidade diferente. Um instante raro de dignidade humana.

Percebendo em Miguelinho esse ser extraordinário, propõe a ele: “Há documentos aqui que o incriminam. Como, por exemplo, este, assinado pelo Sr., mas onde falta a letra O”. Miguelinho calado. E o Conde repõe: “Alguém deve ter assinado pelo Sr.”. O que implicaria em não condenação à morte do padre. Mas, Miguelinho pede o documento, examina-o e responde: “Não, esta letra é minha. Realmente faltou papel para eu colocar o O final do meu nome”. E volta ao silêncio e à oração.

O Conde dos Arcos reclama “Não sou sanguinolento como dizem. Afirme alguma coisa. Explique qualquer ação sua. Vamos, fale”. E Miguelinho em silêncio ficou. Até que a autoridade portuguesa definiu: “Então, está condenado ao fuzilamento sumário”.

Miguelinho ajoelhou-se, chorando e silenciosamente; recitou o “Miserere mei Domine”. Foi arcabuzado a 12 de junho de 1817.

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