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Reaprendendo a ser potiguar

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Marcelo Lima
Repórter

Com 2.597 índios espalhados em dez municípios (Censo de 2010), o Rio Grande do Norte tem a menor população indígena do Brasil. Em 1991, o Censo do IBGE registrou somente 394 índios. Para as lideranças desses povos e antropólogos, o orgulho de se denominar índio vem aumentando. No passado não muito distante, negar a origem era questão de sobrevivência. Agora, para manter viva o que sobrou da cultura ancestral é preciso afirma sua existência no presente. A escola é o principal instrumento para isso.

Embora existam mais de dez comunidade indígenas reconhecidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) no Rio Grande do Norte, há somente uma escola indígena. Com 59 estudantes matriculados, a Escola Municipal João Lino tem uma turma por série  do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. O prédio existe desde  1976 na comunidade do Catu, município de Canguaretama, Grande Natal. Contudo, só em 2008  a instituição ganhou a cara da comunidade.
Com 59 estudantes matriculados, a Escola Municipal João Lino faz intercâmbio da cultura indígena
 Isso só ocorreu depois de muita luta inclusive contra o Estado. “O Rio Grande do Norte é o maior Estado que tem o racismo institucional contra os povos indígenas. Os governos esconderam nosso existência”, disse o cacique José Luiz Soares, mais conhecido como Luiz Catu. Os catus fecharam a casa legislativa e só se retiraram do prédio quando os vereadores foram para uma audiência pública na Câmara. “Em 2010, a Secretaria de Estado omitiu a informação que nós mandamos para o Censo Escolar. Fomos ao Ministério Público por causa disso”, acrescentou.

Toda a disposição para a luta foi para poder ensinar tupi antigo e etno-história para os curumins (crianças). “Sabendo que estávamos dentro de um aldeia, que éramos potiguara e que na educação estava vindo professores de fora, a gente não estava aceitando essa realidade. A gente queria que o nosso conhecimento chegasse a nossas crianças e fosse perpetuado”, acentuou o cacique que também é diretor da escola.

Com ensino integral, as crianças chegam às 7h da manhã e voltam para casa às 16h depois de três refeições. A unidade tem uma sala onde ficam a biblioteca e o laboratório de informática, mas não há professora para cuidar do laboratório. Com a etno-história, as crianças podem aprender um pouco da história de mais de 200 tribos que existiram pelo Brasil. Para auxiliar o conhecimento dessa disciplina, o colégio tem também uma brinquedoteca. O tupi tem iniciação com as palavras que já se usam no cotidiano de qualquer brasileiro, como: siri, jacaré e pixana (gato).
Ladivan da Silva, 10 anos, é filho do cacique e diretor da escola
Foi isso que Larissa Inara França, de 12 anos, ensinou para alunos que vieram de outras escolas conhecer a cultura potiguara durante a Semana Intercultura Indígena,  ocorrida na semana passada. Junto com suas colegas do 5º ano, a pré-adolescente Catu mostrou também para os visitantes os números e os nomes de parentes em tupi antigo.

Embora tenha uma família evangélica, não impede que ela faço o Toré, uma dança de agradecimento a Tupã (Deus). “Não acho diferença”, disse sobre o seu Deus. Como qualquer outra criança não viciada por jogos eletrônicos, ela brinca pula corda, disputa cabo-de-guerra e joga peteca. A diferença é que tem consciência que todas essas brincadeiras foram criadas pelos seus ancestrais.

Isso não quer dizer que Larrisa parou no tempo. No celular, o seu jogo preferido é o Pou, um tipo de bicho de estimação virtual. Com poucas palavras, a jovem diz que nunca sonhou em morar em outro lugar. Pelo menos não por enquanto. “Aqui é mais legal. Aqui tem o Toré, as brincadeiras”, explicou. Ao final da conversa com a equipe do jornal, ela agradeceu com um “maravendocoi”, obrigado na sua língua mãe.

Orgulho contra preconceito

Ladivan da Silva Soares, 10 anos, é filho do cacique. Durante a Semana Intercultura Indígena da escola, ele recebeu a todos com o corpo pintado de urucum e com arco e flecha nas mãos. Para os interessados, ele ainda ensinou a usar o arco e a flecha num peixe. Na verdade, na placa com a figura do animal. Perguntado desde quando ele atira de arco e flecha, Ladivan nem soube responder. “Comecei quando era bebê, eu acho”, disse depois de lançar o olhar para longe como quem vasculha a memória. Nem a década de experiência foi capaz de qualificá-lo a ponte de ultrapassar o seu pai. “Ele é melhor do que eu”, assegurou.

Completamente desinibido no seu habitat natural, ele também lembrou que até os oprimidos, por vezes, vestem a carapuça dos opressores. Dentro da própria comunidade do Catu, há quem já tenha chamado Ladivan de “catuzeiro” numa referência pejorativa à tribo da qual ele faz parte.

Para tentar acabar com essa invasão cultural dentro da própria comunidade, o cacique acredita que é essencial os demais anos do ensino fundamental e uma escola de ensino médio no Catu. “A educação escolar indígena tem que crescer. É fundamental, até porque os alunos do 5º ano praticando o toré aqui, mas quando ele chega lá no centro ele vai encontrar um hip hop, vai ver coisas diferentes e ele vai ver um forma de se vestir de termina suprimindo a dele. Ele termina até se envergonhando”, avaliou Luiz Catu.

Material é dificuldade para educação indígena

Tanto para Etno-histórica quanto para o tupi antigo, o material didático para os estudantes do ensino fundamental é difícil de ser encontrado. A jovem estudante de pedagogia Claudiane Soares, de 23 anos, é indígena da comunidade do Catu. Para conseguir o conhecimento necessário para às aulas ele busca ajuda na internet do professor da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Navarro. “Eu vejo os vídeos que ele postou na internet dele. A pronúncia fica bem legal e também pego o livro Método Moderno de Tupi Antigo”, contou.

O diretor da escola Luiz Catu, que é pedagogo, também sonha com uma aula de Eduardo Navarro para qualificar seus professores. “O Navarro inclusive dá curso de formação da língua tupi. Inclusive parentes da Baía da Traição, na Paraíba, fizeram cursos de formação com ele para o fortalecimento da língua”, contou.

Para chegar aos detalhes de hábitos de tantas tribos que viveram pelo Brasil, os profissionais da escola recorrem a todo tipo de fonte de informação confiável.“Na etno-história é um apanhado geral com o que nós temos, que conhecimento de seminário, eventos e tudo para poder dar essa interação aqui na escola”, explicou o diretor. As atividades esportivas também estão de acordo com a identidade da comunidade. Vale lembrar que os estudantes da única escola indígena do Rio Grande do Norte tem todas as demais disciplinas comuns de escolas regulares, como Língua Portuguesa, Ciências, Matemática e Geografia. 

Intercâmbio

No dia 19 de abril, os Catus receberam membros da tribo Fuliô da Paraíba. Um deles é Auy Ribeiro  de Matos, de 30 anos, que passou o dia inteiro pintado e com cocar na cabeça. “Esses encontros deveriam ter em cada tribo. A gente sempre participa para que o povo que vem de fora, o não índio, entenda um pouco o não-índio”, falou. Segundo ele, a Baía da Traição, região onde mora sua tribo, tem escola indígena. “Acho que falta entendimento do que é um índio hoje para que a gente tenha mais respeito. Assim nós sofreríamos menos preconceito”, finalizou.

Bate-papo: Taís Cruz – professora da Universidade do Vale do Acaraú (UVA) e antropóloga

A lei (11.645/2008)  é para todas as escolas?
Todas as escolas. É uma disciplina até gostosa, a receptividade é maravilhosa. Não sei se é porque tem muita aula de campo (risos). Eu pelo menos tenho esse hábito, quando estou lecionando educação indígena, de sempre levar os alunos para as aldeias que se têm aqui no RN.

Eles têm as expectativas correspondidas quando entram em contato com os índios aculturados?

Quando a gente passa o dia nas aulas de campo, a gente almoça lá. Aí alguns dizem: professora, a comida que eles comem é a mesma que a gente come. Eu digo ‘não, a comida que a gente come é a que eles comem. Eles comeram primeiro isso e passaram para a gente’. Se a gente come hoje tapioca, batata e milho, tudo isso se deve a cultura indígena. Parte dos alunos estão acostumados a ver nos livros didático o índio de cocar, maraca, seminu, pintado. E quando chegam nas mais de dez comunidades indígenas reconhecidas pela Funai no RN ficam naquele choque.

Por que, até bem pouco tempo atrás, se dizia que o RN  não tinha índios?

Os índios do RN sofreram vários extermínios, genocídios. O primeiro foi português com a retaliação depois da invasão holandesa. O segundo genocídio foi literário, quando Câmara Cascudo, nos seus livros, fala que não exista mais índios no Rio Grande do Norte depois que expulsaram os holandeses. Isso não é verdade e a gente tem combatido isso muito hoje no Rio Grande do Norte, principalmente nós antropólogos. Nem todo mundo tem essa visão que os antropólogos têm do que é ser índio hoje. Por isso a gente tem levantado essa bandeira. Primeiro, os índios tiveram que fugir da identidade indígena para não sofrer retaliação. E hoje quando voltaram a assumir as origens indígenas – que nunca perderam -, está sofrendo outro preconceito: o fato da sociedade dizer que eles não são mais índios. Olha que loucura!

Hoje podemos dizer que superamos essa fase de não reconhecimento dos povos indígenas no RN?

A comunidade indígena está vivendo uma nova fase, a fase da aceitação. Primeiro houve a aceitação da comunidade acadêmica. Por sua vez, a comunidade acadêmica começou trabalhos de publicidade mostrando essa outra versão. E também tem nesses grupos pessoas que fazem parte de movimentos sociais. Sempre digo que um dos movimentos sociais mais atuantes que temos hoje são dos índios do RN. Eles estão indo a encontros com outras comunidades, estão resgatando a autoestima de ser indígena.  Mas se você chegar em alguns lugares lá no próprio Catu e perguntar: você é índio? Alguns vão responder que não, “isso é invenção desse povo”. Isso porque eles foram durante muitos nos subjugados, estereotipados, discriminados e até hoje são. Quando as pessoas saem do Catu e vão estudar o ensino médio em Goianinha ou Canguaretama, eles são completamente inferiorizados e voltam para a sua aldeia com o sentimento de não pertencimento, de falta de identidade. Então, a gente tem esse conflito hoje.

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