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Remanso da Piracema

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Cláudio Santos – Desembargador do TJ/RN

Frederico sobe e desce as serras do oeste na carreira, embalado, não há carrapicho, velame, jurema preta, xique-xique, que o segure. E vai soltando, aos borbotões, tudo que lhe vem à boca, sem passar pela cabeça, sem crivo. Às vezes grita esganiçado; noutras, muge ou relincha feito um cavalo popeiro, dando coices e soltando rojões pelo traseiro.

Ora, mas mesmo assim, é um menino querendo colo. Inescondível a carência afetiva do menino-homem, nas suas andanças até o litoral, ao qual chega já velho de vivência e novo de inocência, ainda hoje presentes no autobigráfico Autor.

Chega ao Seridó de um fôlego, embora o narrador atrase a viagem em cima de um caminhão de feira, entre galinhas, porcos e pessoas simples, da região. Debruça-se na confluência dos rios Barra Nova e  Seridó, em Caicó, e, de lá, quase que não sai mais. Agora se vê que Caicó e as serras do alto oeste, encimadas por Martins, ainda não saíram de sua alma, ao contrário, tingiram-na da árida paisagem que as longas estiagens trazem, entrecortando-a em contraste do breve verde do inverno, dos açudes quase espelhos diminutos a desafiar o céu de muito azul, rios e riachos, da curimatã e da traíra subindo a sangria, desafiando a gravidade, como se pulassem teimosamente para a vida.

Anos depois, já em Natal, encontra a vasta paisagem humana que marcou os finais dos anos 60 e toda a mitologia popular do bairro de lazer da cidade, a Ribeira, com as personagens desde grotescas até santificadas no tempo seguinte, afora os bordéis, bares e afins, com as aderências conseqüentes, desde policiais, poetas, gigolôs, gozadores e vítimas da vida.

Como condição para me presentear com um exemplar de o “Remanso da Piracema”, ainda inédito, François Silvestre faz exigência: que lhe dê retorno. Faz a melhor ficção em cima de fatos e pessoas de verdade e passeia pelo meio-ambiente humano daquela época, em que a pureza dos cabarés, tal qual uma espécie de circuito Elizabeth Arden, da velha Ribeira cansada de tantas guerras, desde a segunda, que hoje nos parece evidente, de certa forma, pela ausência do vicioso/viciado círculo da hipocrisia humana e cultural, inclusive pela presença da sanfona, pandeiro e triângulo ao invés do axé music vomitado nas traseiras escuras dos veículos, moda trazida à medida da crescente necessidade de status social, ocorrente hoje.

Ora, mas a ignorância cultural está em voga, como bem defende até o nosso presidente!

Frederico, como personagem, contribui com impagáveis e belas palavras do regionalismo, ainda vivo por lá atualmente, como o emblemático ‘garachué’, evidenciando-se rico palavreado, o que torna gostosa a prosa que desce redondo, sem descair para a besteira pretensiosa de sinônimos raros, não pouco presentes entre pretensiosas prosas de alguns intelectuais provincianos.

As coisas de Deus na terra, ressaltando-se a grande influência da igreja católica como instituição, e os padres à antiga – que sabiam bem ler e escrever -, cultivando as últimas pétalas das tradições eclesiásticas, sempre com o demônio à disposição, para aplicação imediata sem direito a recurso, sanção que se desfia com o tempo pelo desuso da ineficácia.

As cidades do sertão potiguar continuam algo paradas no tempo, mantendo a natureza humana em quase hibernação e os novos costumes em linear aculturação à moda de Ipanema, fatos chorados em lamentos, mas que revelam algo de bom se cultivados sempre, por nós outros, os valores permanentes inerentes à simplicidade e fluidez da condição humana. Mudar apenas o inevitável; evoluir em qualidade de vida, sempre.

Frederico vai à paulicéia, ainda pouco desvairada, e de lá retrata outras paisagens humanas não muito diferentes das que conheceu até então, pois observa e guarda na memória apenas os elementos humanos comuns aos interlocutores anteriores. Passeia pela política e vai adotando, como sempre, alguns botecos que juntam os mesmos corpos, em verdadeira confluência dos propositalmente perdidos que se agarram na bóia do copo para viver bons momentos e esquecer o cotidiano. É a eterna e gostosa terapia da conversa sem futuro, quando o tempo escoa enquanto vai se enchendo inúmeras linguiças e ‘quartinhas’ de conversas sobre tudo, até política, vida alheia, futebol e política.

O ‘Remanso da Piracema’ é um relato em ficção quase verdadeira da realidade do povo e do chão do sertão nordestino em direção à cidade grande, sob a lupa da memória de um sertanejo que se engolfa nas razões próprias e intestinas para exprimir sua estória vivida e a que não foi mais poderia ter sido – vivida!.

O livro só não é mais gostoso do que curimatã gorda e ovada ou piau assado na brasa à sombra da craibeira encostada na parede do açude, sempre grudados a uma boa lapada da cachaça, de qualquer marca, ruim é não ter nenhuma.

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