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Rituais

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I – ALGO EM MIM me propõe sempre o silêncio e a solidão. Possível que essa seja a combinação lógica da minha natureza. No entanto, entrego-me à inquietude e às algaravias diárias, talvez em face de uma certa desesperança nos mares da tranquilidade. É porque fui ensinado na arte da guerra e da disputa, na defesa do espaço próprio (coisas de leões?), mesmo que o brilho não me cubra com a sua capa. Faço sempre um “mea-culpa” por não buscar santidade, mantendo-me nas miudezas humanas e num certo caminho errante e quase indisciplinado. É porque ainda creio e opto pela arte da contemplação e a ela me entrego quando me é permitido.

II- OS RITUAIS que alimento e perenizo são fartos, muitos. Diante do céu aberto, mantenho a perplexidade do olhar. Testo as minhas incredulidades e me deixo vencer pelo real que é fantasia. Alguma lágrima rola leve pelo rosto. Logo após, solto risos, gargalhadas. Chega-me uma maneira de desenferrujar as crenças. Lembro qualquer coisa que antes havia esquecido na esquina. Sou pego por um déjà vu. Envergo o pescoço para perceber se a lua apareceu e onde. Digo algo pra mim mesmo. E calo. E ouço todos os silêncios compartilhados.

III- SÓ PÁSSAROS cantores pousam na moldura da minha janela. Ouço-os enquanto me preparo para o dia, que chega arremessando bolas de fogo, o sol ardendo nas pupilas. Aproximo-me para ver e ouvir os meus parceirinhos diários e constato o voo ligeiro, a fuga. Só então me dou conta da minha intrusão e dos meus movimentos inoportunos. Eu já não tenho a música dos passarinhos. Não há como reconstituir o pequeno grupo sobre o mármore. Decido, então, aproximar-me mais da janela. Ganho, por isso, um novo espetáculo: os meus amiguinhos se juntam a uma revoada multitudinária que migra agora para mil janelas de um mundo onírico, onde lhes serão distribuídas cem cores para cada um.

IV- UMA MANGA ROSA caiu em minhas mãos, veio a mim dentro de um sonho. Senti o seu perfume, examinei a sua cor e o seu brilho, cravei os dentes na fruta. Um peito suculento que me chegou dos céus, nem vi quando desceu sibilante entre as folhas da mangueira gigantesca. Aquela mangueira me alimentou de sonhos durante anos. Aquela árvore em cujo topo comecei a avistar todo o mundo. Agora ainda escorre o sumo entre os meus lábios e o peito lindo e doce da manga. Vislumbro um verão com sal na língua, em busca de mais sabores agridoces. Nunca bastam. Os gostos só alimentam de mais desejo os desejantes. Lambuzar-se é a lei.

V- OS DEDOS DANÇAM sobre as teclas. Acho que eu queria era ser um pianista. Nesses dias, no avião, adormeci ouvindo uns “Noturnos”, de Chopin, executados por Horowitz. Descansei de todas as dores naquelas notas. Não havia como observar pássaros pela janela. Eu era o pássaro atravessando a noite que contrastava com uns algodões lá fora. Eu era o pássaro que voava por sobre o Atlântico. Sonhava que era. Sonhava que o sonho jamais acabaria. E adormeci, na lentidão da madrugada, aninhado numa poltrona que levitava entre silêncios e raras luzes.
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