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Saberes compartilhados em Nova Natal

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Ramon Ribeiro
Repórter

Dentre os vários artistas que se destacaram no período efervescente dos anos 70 e 80 em Natal, está o de Venâncio Pinheiro. Artista plástico, poeta e agitador cultural, ele se envolveu com as primeiras comemorações do Dia da Poesia na cidade, bem como o Festival do Forte. Sua atuação estava relacionada majoritariamente ao Centro Histórico. Mas de um tempo pra cá Venâncio andou de saco cheio com a Cidade Alta e foi atrás de mudar de ares. Fez isso radicalmente, em 2014, mudando-se de mala e cuia para Nova Natal, conjunto habitacional localizado em Lagoa Azul, na Zona Norte. O bairro é o mais novo da capital potiguar e o mais distante do centro da cidade.

Venâncio Pinheiro no seu quintal repleto de mudas: Nova Natal tem num sei quantas bocas de fumo, centenas de bares, mas nenhuma escola
Venâncio Pinheiro no seu quintal repleto de mudas: Nova Natal tem num sei quantas bocas de fumo, centenas de bares, mas nenhuma escola

Conhecida pela maior feira livre de Natal, onde se encontra de tudo, e por aparecer com frequência no noticiário policial, Nova Natal também guarda histórias incríveis e uma vida social intensa. Inquieto por natureza, Venâncio sacou essa característica e tratou de se inserir na dinâmica do lugar, buscando conhecer à fundo a realidade local, os artistas, as iniciativas bacanas e potencialidades. Percebendo a carência de equipamentos de educação, cultura e lazer, ele quis agir nessa área, criando em 2016, em sua própria residência, a Casa de Mídia. Apesar do nome, não se trata de um espaço voltado para comunicação, mas sim para cultura e ação, com slogan autoexplicativo: Criar, Produzir e Compartilhar.

“Nova Natal tem num sei quantas bocas de fumo, centenas de bares, mas nenhuma escola. Os jovens estão por aí atrás de alguma coisa pra fazer. Alguns adultos estão desempregados. Eu também preciso de dinheiro. Então fui atrás dessa turma para criarmos soluções para nossas próprias vidas e para toda comunidade”, conta Venâncio. “Estamos buscando saídas econômicas para quem mora aqui, tendo a cultura e ações sociais como ponto de partida. Queremos encontrar soluções novas. Existem mil possibilidades aqui”.

Prestes a completar dois anos de Casa de Mídia, Venâncio já desenvolveu com a comunidade projetos como o “Meu Quintal”, de hortas urbanas, o “Dia da Poesia”, com recital na feira do bairro, montou um acervo com mais de 25 mil fotografias da feira, e, agora, quer partir para novas ações, como o Museu da Pessoa Comum, com histórias de vida dos moradores. Sobre esses assuntos, Venâncio conversou com a TRIBUNA DO NORTE.

Criatividade local
Nova Natal é uma área carente do poder público, mas a população se vira da forma que dá. Existe um comércio forte aqui. A avenida principal é cheia de lojas de roupa. Tem até uma curiosidade, que são esses manequins na calçada. São centenas deles, todos vestidos, coloridos. Foi um morador daqui que começou com isso. Viu essa ideia na Itália e replicou aqui. A feira do bairro também é grande, é a maior da Grande Natal e atrai gente de toda a região. Acredito que Nova Natal têm muitas potencialidades a serem exploradas.

Casa de Mídia
Apesar do nome, a Casa de Mídia não é um projeto de comunicação. É um espaço de cultura e ação, ação progressista. Nosso objetivo é cidadania. Não temos dinheiro nenhum, somos todos voluntários, tentando ajudar uns aos outros. Queremos encontrar saídas econômicas para todos que precisam. A sede da Casa de Mídia é na minha residência. Temos alguns livros, quadros de artistas. Na varanda promovemos bate papos, pequenos shows de artistas do bairro. A porta está sempre aberta.

Faça você mesmo
Na Casa de Mídia a gente não espera apoio público. Vamos articulando as ações com criatividade. Somos meio punks nesse sentido, nossa filosofia é a do “faça você mesmo”. Estamos mais para anarquistas, do que para qualquer ideologia partidária. Somos movidos por ações progressistas. Quem quiser somar pode chegar junto. Mas buscando soluções colaborativas, novas, e não chegando com modelos fechados. Valorizamos aqui a identidade do bairro e não modelos padronizados vindos de fora.

Meu Quintal
O Meu Quintal é um projeto que está dando certo aqui. Começou com uma atividade proposta para os meninos daqui. Pedi para eles caçarem flores no bairro. Eles encontraram muitas coisas nos quintais das casas. Então veio a ideia de fazer um almanaque botânico dos quintais de Nova Natal. A partir daí surgiu o projeto “Meu Quintal”, um consórcio de hortas urbanas. Temos seis quintais participando. Há plantas medicinais e frutíferas. A produção é para consumo. Cada quintal produz algo específico e daí trocamos entre si. Temos também uma banca na feira, onde vendemos mudas, como de morango e cereja selvagem. É uma saída econômica para quem participa. Dos quintais dá para se tirar uma grana para pagar a água e luz das próprias casas.

A grande feira
A feira de Nova Natal é uma feira livre mesmo, espontânea, sem controle. A prefeitura nem o trânsito organiza. Ela acontece todo domingo. Se encontra de tudo lá. Lembra aquelas feiras medievais. Aqui ainda se vende os cereais no saco, algo que não se vê mais por aí. O artista Guaraci Gabriel aparece por aqui atrás de sucata à vezes. Temos uma ginga com tapioca fantástica, pastel com caldo de cana é muito presente também. Mas as feiras tem alguns problemas para serem resolvidos, principalmente com relação a higienização. Alguns políticos já vieram conversar para propor uma estrutura melhor. Mas não defendemos aquela padronização das feiras de Natal, totalmente sem graça. A feira de Nova Natal tem um colorido próprio. Sua identidade deve ser preservada.

‘Dona Porra’
A feira é um lugar cheio de figuras interessantes. Já encontrei um cara que vem de Santa Rita só pra desopilar. Tem uma senhora lá que apelidei ela de ‘Dona Porra’. Ela é um cabaré oral. Tudo que ela fala tem pornografia no meio. Ela já atende você perguntando: “O que você quer, seu porra?”. Mas ela só é assim na feira. Quando sai de lá é uma figura normal.

Acervo fotográfico
Nós da Casa de Mídia produzimos um arquivo com mais de 25 mil fotos sobre a feira de Nova Natal. Juntamos uns jovens do bairro e demos a eles máquinas fotográficas para que eles explorassem a feira. Compramos as máquinas na própria feira, bem baratinho. Eles registraram de tudo. Cada excursão tinha um tema diferente. Fizemos alguns registros de problemas sérios. Ainda estamos vendo como vamos trabalhar todo esse material.

Dia da Poesia
Uma de nossas primeiras ações com a Casa de Mídia foi a comemoração do Dia da Poesia. Alugamos quatro bancas na feira e promovemos recital de poemas, com músicas. Começamos com o sarau “Do poema processo ao poema possesso”, tendo o trabalho do Moacir Cirne como referência. Moacir foi o cara mais doido que já conheci. A gente leva caixa de som e microfone a solta os versos para quem quiser ouvir. Temos uma boa relação com os feirantes. Já estamos preparando a ação deste ano.

Museu da pessoa comum
Na comunidade têm muitas histórias fantásticas, pessoas que viveram aventuras, ex-jogadores de futebol, gente com atuação destacada no bairro. A Lailde, por exemplo, é uma moradora daqui que começou uma biblioteca no bairro, se formou em biblioteconomia na UFRN e segue com o projeto. Para mostrar as várias histórias de vida dos moradores, estamos desenvolvendo na Casa de Mídia o Museu da Pessoa Comum. São entrevistas em vídeo que publicaremos num no nosso canal no Youtube. Mas também temos outros projetos, como a Feira de Sonhos, com o intuito de comercializar a produção dos jovens do bairro, e a Feira de Sonhos Utópicos, para debater a realidade local e pensar juntos outros tipos de solução.

Colaborou: Cinthia Lopes, editora

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