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Sobre Lon Fuller

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Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República

Faz pouco mais de um mês, escrevi aqui sobre o filósofo e jurista inglês H. L. A. Hart (1907-1992), o grande expoente da corrente jusfilosófica de pensamento denominada “jurisprudência analítica” (“analytical jurisprudence”), cujos estudos, sobretudo o seu famoso livro “The Concept of Law” (1961), revitalizaram o positivismo jurídico, que andava em baixa na sua época. Chegou a hora de conversamos um pouco sobre outro grande jurista de língua inglesa, mas desta feita americano, Lon Fuller (1902-1978), que está para o direito natural do Século XX, como pioneiro na revitalização dessa milenar corrente de pensamento jurídico no mundo anglo-americano (onde estava “fora de moda” desde a segunda metade do século XIX), como Hart está para o positivismo jurídico. Aliás, os debates entre esses dois grandes jusfilósofos, sobre os conceitos de Justiça, Direito, Moral etc., são famosíssimos.

Lon Luvois Fuller nasceu em Hereford (estado do Texas-EUA), em 1902, em uma família de classe média baixa. Em 1906, quando ainda criança, a família mudou-se para a Califórnia. Após um período na Universidade de Berkeley, Fuller estudou e formou-se em economia (1924) e direito (1926) na Universidade de Stanford (ambas prestigiosas universidades no estado da Califórnia). Para desapontamento do pai, não exerceu a advocacia. De 1926 a 1939, foi sucessivamente professor nas universidades de Oregon, de Illinois e Duke. Em 1939, aportou na Universidade de Harvard e ali ensinou, durante mais de três décadas, até sua aposentadoria em 1972. Muitos de seus alunos, a exemplo Ronald Dworkin (1931-2013), tornaram-se, por sua vez, os grandes juristas das gerações seguintes (ou mesmo os grandes políticos, como o seu “aluno” Richard Nixon). Publicou inúmeros livros e artigos, entre eles: “Law in Quest of Itself” (1940), “Basic Contract Law” (1947), “The Case of the Speluncean Explorers” (famoso artigo de 1949), “Problems of Jurisprudence” (1949), “The Morality of Law” (1964), “Legal Fictions” (1967) e “Anatomy of Law” (1968).

Muito embora tenha marcadamente contribuído com o desenvolvimento de outros ramos do direito (direito contratual, notadamente), a maior contribuição de Fuller para a ciência jurídica acha-se, sem dúvida, no campo da filosofia do direito, mais especificamente na corrente filosófica do direito natural, a partir da sua célebre obra “The Morality of Law” (1964) e os debates que ela ensejou com Hart, já aqui referidos, que tiveram lugar, sobretudo, na conceituada “Harvard Law Review”.

Como sabemos, a concepção de Direito Natural é antiquíssima. Através dos tempos, é apresentada, entre outros, por pensadores como Aristóteles (384-322 AC), Cícero (107-44 AC), Santo Agostinho (354-430), São Tomás de Aquino (1225-1274), Hugo Grotius (1583-1645), John Locke (1632-1704) e Rousseau (1712-1778); mais recentemente, no século XX, podem ser citados, como eminentes jusnaturalistas, Giorgio Del Vecchio (1878-1970), o próprio Lon Fuller, Ronald Dworkin e John Finnis (1940-). A grosso modo, defende-se a existência de um direito natural, de um direito fundado na razão ou no mais íntimo da natureza humana, na qualidade de ser individual ou coletivo, ou mesmo na nossa relação com Deus, que preexiste ao direito que é produzido pelos homens ou pelo Estado e que deve ser sempre respeitado. O jusnaturalismo tem seguidores que vão desde ardorosos apóstolos, como São Tomás de Aquino (que desenvolveu sua concepção do Direito baseada na relação entre os seres humanos e Deus), a moderados defensores, como o nosso Lon Fuller, que apenas afirma haver critérios/princípios preexistentes ao “direito positivo” e que devem ser levados em consideração em qualquer sistema jurídico.

Em muitos aspectos, a obra magna de Lon Fuller, “The Morality of Law”, publicada em 1964, foi uma deliberada contraposição a “The Concept of Law”, de H. L. A. Hart, que havia sido publicada apenas alguns anos antes, em 1961. A grosso modo, Fuller defendeu que as normas legais, para serem assim reconhecidas, deveriam atender a alguns critérios processuais ou formais, tais como: serem devidamente publicizadas, serem claras, serem mutuamente consistentes (sem antinomias entre elas), serem prospectivas, serem estáveis, assim como não demandar do cidadão, nem do governo, algo que não seja possível de realizar. Fuller também defendeu que o sistema legal deve fomentar a harmonia entre as atividades/funções legislativa, administrativa e judicial e, sobretudo, ser governado pelo que eles (os anglo-americanos) chamam de “rule of law”. Esses princípios/critérios, segundo Fuller, representam a “moralidade interna da lei”. A conformidade com eles leva a leis substancialmente mais justas. E quanto mais um sistema legal for capaz de atender a eles, mais próximo ele estará do ideal

Hart severamente criticou Fuller, afirmando, em síntese, haver ele confundido “moralidade” com “eficácia”, notando que mesmo leis substancialmente repugnantes – como a Legislação nazista, por exemplo – poderiam constituir um sistema legal consistente com os critérios do jurista americano.

Fuller respondeu a Hart. Em síntese, afirmou que se os critérios por ele (Fuller) estabelecidos para o sistema legal “ideal” tornam esse sistema mais “eficaz”, como sugere Hart, também o tornam mais “moral”. O sistema legal nazista seria ainda mais “imoral” cada vez que promulgasse leis secretas, inconsistentes, retrospectivas etc. No mais, o fato de as leis serem substancialmente injustas, embora formal/processualmente justas (segundo os critérios de Fuller), não anulam o fato de que essas leis são morais em pelo menos um aspecto, o formal. Na verdade, os sistemas legais podem ser “imorais” de várias formas, como nos tentam explicar hoje os grandes jusnaturalistas contemporâneos, como Ronald Dworkin e John Finnis.

Quem estava certo, Fuller ou Hart? Não sei dizer.

Mas é certo que Lon Fuller, com as suas inúmeras publicações, foi, como afirma Robert S. Summers (em “Lon L. Fuller”, título da série “Jurists: Profiles in Legal Theory”, publicado pela Stanford University Press), um dos maiores pensadores do direito no século XX americano. E sua obra hoje pertence ao mundo todo, acrescento eu. 

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