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Sobre mortalhas e enterros

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João Medeiros Filho
Padre 
Relevem-me, primeiramente, a temática lúgubre de hoje. Este texto é apenas uma abordagem cultural, sem intenções teológicas. Recentemente, encontrei dentro de um livro um bilhete de Oswaldo Lamartine. Nele, um pedido: “Vigário, complemente o que papai escreveu em Velhos costumes do meu sertão, a respeito de mortalhas e sepultamentos.” Sem pretensão de exaustividade, acrescentarei alguns dados colhidos, durante a minha vida de pároco no Seridó. Oswaldo também me faz lembrar o versículo bíblico: “Eu vos louvo por conservardes as tradições.” (1Cor 11, 2). Segundo o tanatólogo Philippe Ariès, em História da Morte no Ocidente, “a mortalha é um componente cultural judaico.” Isto fazia-se muito presente na região seridoense, onde viveram holandeses (muitos professavam o judaísmo), nos séculos XVI-XVII. Entretanto, é inegável que os ancestrais lusitanos eram detentores de costumes análogos, segundo Norberto Ferraz, em Vestidos para a sepultura: a escolha da mortalha fúnebre na Braga setecentista. Destaca-se o trabalho, de autoria de Hortência de Abreu: Práticas do bem-morrer e o uso da mortalha em Sergipe.
Juvenal Lamartine de Faria, na obra citada, escreve: “O defunto era amortalhado… Quando portador de patente da Guarda Nacional vestiam-no com o uniforme da mesma. Em se tratando de uma senhora, era vestida com um hábito preto e, se donzela, de mortalha branca e grinalda.” O ilustre escritor relata o uso frequente de uma túnica branca, habitual nos sepultamentos judaicos. Tal cor reporta ao simbolismo da pureza. Na crença popular, dever-se-á ingressar no céu com uma veste cândida de fulgor celestial. Com os anos, os costumes vão sendo alterados. Outros elementos, inclusive do cristianismo, foram acrescentados pela inculturação. Mais cores vão surgindo, conforme a devoção dos fiéis. Criam-se assim os tipos de mortalha, seguindo os trajes dos santos da devoção do falecido ou de seus familiares. Sem dúvida, o orago das paróquias era fonte de inspiração para as vestimentas da última viagem.  Os homens eram sepultados, amortalhados com trajes imitando os hábitos dos santos Francisco, Vicente de Paulo, Antônio, João Batista etc. As mulheres eram inumadas com roupas análogas às vestes de Nossa Senhora, Santas Teresinha, Rita de Cássia e outras. As crianças eram vestidas com mantos angelicais. Na crença popular, elas também são anjinhos de Deus. Antes do enterro, cantavam-se as “incelenças”, objeto de outro artigo.  
Tornou-se tradição, quando morria uma pessoa sem posses, a família dirigir-se ao patrão, padrinho ou alguma pessoa importante, suplicando ajuda financeira para as despesas do sepultamento. Em último caso, recorria à prefeitura. Parece originar-se daí a ideia do auxílio funeral no serviço público e nos institutos de previdência, vigente em décadas passadas. Hoje, as municipalidades custeiam urnas funerárias às famílias carentes.  O enterro de então era simples. Não havia a sofisticação hodierna. Os mortos eram carregados em redes, lembrando o sono e descanso eterno. Os caixões (urnas funerárias), quando usados, eram fabricados no dia do óbito, seguindo parâmetros e ritos. Aqueles destinados a homens eram recobertos de tecido preto com uma cruz branca sobre a tampa. Os ataúdes de mulheres casadas eram de cor roxa e os de solteiras, forrados de azul; os das crianças azul e branco, recordando o manto de Nossa Senhora. 
Após o sepultamento, os familiares deviam trajar preto. O luto durava, conforme o parentesco do falecido. Viúvos e filhos deviam trajar roupas pretas, durante um ano. Irmãos e sobrinhos, seis meses e os demais parentes, três. Os homens deixavam crescer a barba até a missa de trigésimo dia. As viúvas não cortavam e pintavam os cabelos, abstendo-se de usar pinturas nas unhas e na face. Na impossibilidade de trajar preto – durante o uso de farda ou uniforme – costumava-se apor na camisa ou paletó uma tarja preta (“fumo”). Outrora, ela foi considerada insuficiente como expressão de luto, por um parente meu, sargento da polícia em Campo Grande (RN). Inusitadamente, mandou tingir a farda. Isso lhe valeu, além da reprimenda do comandante, sete dias de detenção. Os falecidos eram levados à igreja, antes de ser conduzidos à sepultura. Se considerados grandes pecadores, entravam de costas, pois eram indignos do altar. Ao adentrar no templo, recitava-se: “Uma só coisa pedirei ao Senhor, poder morar na sua Casa.” (Sl 27/6, 4).  
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