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Sobre resmungar

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Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República • Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL • Mestre em Direito pela PUC/SP
A filosofia e a arte “caipira” (ou “sertaneja”, como chamamos aqui pelo Nordeste) são surpreendentes. Não têm a justeza de uma “Principia Mathematica”, nem as alturas de uma “Montanha Mágica”, é verdade, mas são dotadas de uma sabedoria, guardada e transmitida por nossos antepassados, que é universal e atemporal. 
Uma dessas sabedorias, apresentada em melodia e verso, a gente acha na canção “Vide, Vida Marvada”, do grande Rolando Boldrin (1936-), ator, compositor, cantor, apresentador e, sobretudo, um dos maiores divulgadores da cultura caipira/sertaneja brasileira. Nessa famosa canção – e quem não se lembra das aberturas do antigo “Som Brasil” ou do hoje “Sr. Brasil”? –, Boldrin nos alerta: “Tem um ditado dito como certo/Que cavalo esperto num espanta a boiada/E quem refuga o mundo resmungando/Passará berrando essa vida marvada”.
É claro que Boldrin aí não se ocupa daqueles que reclamam, justamente, quando um direito próprio ou mesmo alheio é desrespeitado. Esse tipo de reclamação, até fazendo uso dos meios legais disponíveis, é um belo exercício de cidadania. 
Em “Vide, Vida Marvada”, Boldrin se refere, certamente, àqueles tipos que vivem de lamentações. Lamentam de tudo. Do tempo, da neblina, do calor de rachar ou do frio ocasional. Da comida, sem sal ou doce demais. Do trânsito cotidiano. Do trabalho enfadonho. Da modernidade. E, sobretudo, se lamentam culpando os outros. A família (os pais, em especial), o patrão, os políticos da moda, a imprensa, os índios ou a “juventude transviada”. Para estes tipos, de frustração em frustração, a culpa é sempre dos outros. Nas mínimas coisas e do insucesso de suas vidas. Isso é muito triste. 
Mas, para além disso, eu acho que Boldrin se refere sobretudo a um tipo mais específico da fauna humana, muitíssimo mais pernicioso: o resmungão. Espécimes deste grupo, infensos aos estudos e à moderação, hoje pululam na “terra brasilis”. Eles são um plus em relação àqueles que só lamentam. São amargurados, com certeza. Embora neguem, quase sempre são recalcados, achando que a vida lhes deu menos do que eles mereciam. São invejosos, sem conseguirem sequer disfarçar. E se, no passado, o ato de resmungar era uma característica dos mais velhos, quase sempre saudosistas (mesmo que seja de uma ditadura militar, pasmem!), hoje virou doença até dos mais novos (ou daqueles nem tão novos assim), que teimam em jogar toda a sabedoria herdada e adquirida (pelos outros, claro) no lixo. 
O resmungão de hoje é quase sempre um tosco. É anti-intelectual para esconder sua alergia aos livros. E quer fazer contracultura sem nunca haver feito cultura antes, esquecendo-se de que Picasso (1881-1993), para pintar como pintou, desenhou antes como Rafael (1483-1520), o renascentista (desde já informo que essa frase/ideia não é minha, tendo-a lido já não sei mais onde). Resmungando, ele comenta tudo sem saber razoavelmente – que dirá profundamente – de nada. “Sapateiro, sapateiro”, diria a ele o lendário pintor Apeles (370-306 a.C.). Tem certeza de tudo, sem nunca ter dado conta da sabedoria do velho Sócrates (469-309 a.C.): “Só sei que nada sei”. É geralmente agressivo nas redes sociais ou algo que o valha, aproveitando-se, covardemente, de um populismo/fascismo que toma conta das coisas (mas eles não passarão!), das distâncias físicas que estas (as tais redes) proporcionam e da sua insignificância como interlocutor na sociedade.
Sim, e o resmungão é, para a imensa maioria das pessoas, tirando uns três ou quatro que insistem em bater palmas para maluco, um chato. Aliás, é mais que um chato. É uma personalidade carregada e tóxica. Tanto para ele mesmo como para o próximo. “Vade retro, Coisa Ruim”, talvez a ele dissessem os mais espiritualizados, acreditando tratar-se de uma alma ou inteligência mais do que desperdiçada. 
De minha parte, sugiro apenas a sabedoria caipira (e ele não precisa nem ler, basta escutar). Nada de resmungar. Nada de berrar. Muito melhor é ruminar (leia-se estudar, refletir e também trabalhar). Como confessou o Sr. Brasil: “Diz que eu rumino desde menininho/Fraco e mirradinho/A ração da estrada/Vou mastigando o mundo e ruminando/E assim vou tocando/Essa vida marvada”. Afinal, “Cumpadi meu que envelheceu cantando/Diz que ruminando dá pra ser feliz”. 
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