sexta-feira, 19 de abril, 2024
31.1 C
Natal
sexta-feira, 19 de abril, 2024

Sobre travessias

- Publicidade -

Andreia Clara Galvão
Psicóloga

Épocas trágicas e insanas da história, de grandes sacrifícios e perdas, guardam em si uma potência de narrativas e interpretações sobre a condição humana. Sobretudo quando o tempo já operou seus poderes de distanciamento e já nos oferta possibilidades de movimentação que nos permitem ver as situações por  ângulos diversos. O filme “Lore” dirigido pela australiana Cate Shortland,  conta uma história na Alemanha pós- guerra, a partir da saga de uma adolescente “Lore” e seus quatro irmãos. É um filme desses que só pode nascer da proximidade experimentada por quem  já pôde ficar longe. O filme baseia-se no livro “The Dark Room,” de  Rachel Seiffert. É forte, contundente e profundo. Ao mesmo tempo é delicado, sutil. Filme  lindo. Há diferenciados enquadramentos e cortes da narrativa que são poéticos, belos e rítmicos.

Quem for assisti-lo, não espere ver a luta pela vida nos campos de concentração, as cruéis cenas do massacre dos judeus, nem Hitler com seus discursos, nem as batalhas violentas do dia D. Tudo isso está lá, profundamente. Embora não apareça de forma direta. “Lore” conta dos efeitos das crenças dos pais  sobre as crianças. “Lore” conta dos efeitos das convicções sobre um povo. “Lore” fala da condição humana de repetir. E, ademais, “Lore”  conta de outra importantíssima capacidade humana: poder interrogar o que está posto a partir de balizas nascidas da experiência própria e do encontro com outros que estão fora da bolha das convicções aprendidas. Essas que até então, eram rumo fechado a seguir, ideia a repetir, comportamento a copiar: dos pais, dos líderes políticos que os orientavam, de um povo e de uma cultura  vivendo um tempo da história. Rupturas fortes tem algo de devastador, de desnorteador: “Lore” nos fala disso. Rupturas importantes pedem de quem as experimenta, um repensar os ideais, um reavaliar de valores, uma reorientação das verdades norteadoras.

Lore, a menina protagonista, cujo nome dá nome ao filme, é uma das cinco filhas de um casal filiado e atuante  no partido de Hitler. Ela,  portanto, foi criada como produto da alienação nazista. Quando Hitler morre e a guerra vai chegando ao fim, a Alemanha é tomada pelos Aliados. É nesse momento que, em meio ao medo e desespero, porque eles deveriam ser mortos, os pais de Lore a “abandonam” com a incumbência de cuidar de seus irmãos mais novos, dentre eles, um bebê em fase de amamentação. Por isso o filme também é representativo da travessia adolescente. Essa que todos os adultos um dia tiveram que empreender e que os adolescentes de agora, cada um em seus contextos deverão estar atravessando.

O que Lore precisará fazer em sua saga, de modo contundente e dramático em  seu caso, é o que o que todo adolescente um dia precisará fazer. A saber: deixar o mundo da infância, fazer o caminho que leva ao encontro com o mundo além dos muros de casa, da escola, do bairro onde nasceu. Encontrar-se com outros dizeres, outras convicções além daquelas que escutou até então, e que tinha como verdade absoluta. E ir esboçando, construindo posições suas, singulares e autênticas, onde deverá empreender suas sínteses e rupturas frente ao familiar e ao novo. Ao adolescente caberá o encontrar-se com a  diferença e a diversidade que habita a humanidade, na qual ele precisará ir encontrando lugares para inscrever-se como Um, como Mais Um tomando parte no mundo.

A menina do filme precisará fazer a travessia de toda a Floresta Negra, e ainda lutar e cuidar  para que ela e seus irmãos menores sobrevivam e cheguem bem até a casa da avó, em Hamburgo. A travessia é feita  num ambiente completamente adverso. Eles haviam aprendido  a odiar os judeus. Porém,  desconheciam as crueldades consequentes a esse ódio, não sabiam das mortes, dos campos de concentração, das perseguições. Nem tampouco sabiam da adversidade que haveriam de enfrentar no pós – guerra, por serem filhos de uma família nazista, com pais mortos pelos crimes cometidos. É entretanto, o encontro com um suposto jovem judeu, que a eles se incorpora e que passa a funcionar como parceiro, anjo protetor, que a leva a interrogar os valores aprendidos. É justo com este a quem deveria odiar, que ela experimenta os primeiros sentimentos de amor. 

É somente quando faz a travessia da floresta, que encontra sua avó e os antigos valores que norteavam sua família e quando perde a companhia do rapaz, que Lore soube do que a ela importava, de suas diferenças com o que havia aprendido, da sua necessidade de romper com o que não dizia dela, da nova e profunda verdade que a travessia lhe ensinara. Lore é forte e belo porque interroga a todos nós.

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas