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Soninha Benevides: Cozinha e afeto à beira da Lagoa do Bonfim

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Por CInthia Lopes e Ramon Ribeiro

Foi na Lagoa do Bonfim que a chef Soninha Benevides tomou seu primeiro banho de lagoa, passou suas férias escolares, saboreou o bolo que Dona Nazinha fazia no fogão à lenha, apanhou laranja no laranjal de Josimar, viu o clube dos caçadores ser engolido pela cheia de inverno. Sua relação com o lugar remonta ao início dos anos 70, quando seu pai adquiriu uma granja na beira da lagoa. Muitos anos depois, já chef graduada e experimentada em importantes escolas da Europa e com trabalho reconhecido em Natal, Soninha empreende ali seu grande projeto autoral, o restaurante O Bule, cujo cardápio se baseia na fusão de ingredientes regionais com técnicas modernas.
Soninha Benevides

Foi no Bonfim que a chef Soninha Benevides tomou seu primeiro banho de lagoa, saboreou o bolo que Dona Nazinha fazia no fogão à lenha, pegou fruta no laranjal de Josemar, que infelizmente foi dizimado.

O estabelecimento foi inaugurado em 2011 e precisou de pouco tempo para se tornar um sucesso entre os apreciadores da boa mesa. Mas nos últimos dois anos a casa esteve fechada. “Esteve”, pois já há uma data para a reabertura: dia 27 de setembro. Os detalhes a chef informará mais adiante. O tema desta entrevista concedida à TRIBUNA DO NORTE tem a ver com o restaurante, mas de modo tangente. A história central aqui é a Lagoa do Bonfim.

Soninha fala do Bonfim da sua infância e do presente, sonhando com um futuro melhor para o lugar. Descreveu como a lagoa está hoje, a preocupação dos moradores com o meio ambiente, a invasão dos condomínios residenciais, o convívio com figuras simples e de grande saber local – que a chef faz questão de valorizar. Toda essa relação de décadas com a Lagoa, associada à formação gastronômica especializada, de algum forma deve refletir nos pratos que produz. E é como Soninha mesmo diz: “Eu acredito muito que um cardápio tem que contar uma história. A comida tem que tratar da vivência de cada um de nós. E quando você consegue fazer isso, com honestidade, todos apreciam”. Confira a entrevista.

A PROPRIEDADE
Meu pai comprou a granja em 1971, o dono era Seu Francisco, um senhor evangélico aposentado dos correios. A granja custou 15 mil cruzeiros e o contrato foi de boca mesmo, no tempo em que as pessoas honravam a palavra. Meu pai pagou parcelado mil cruzeiros por mês. Um acordo honrado até o fim. Quando chegamos aqui existia uma casa pra gente e outra para os moradores do terreno, Seu Severino e Dona Nazinha, junto com a mãe Franca. Como nossa casa era pequena para cinco filhos, papai fez algumas reformas.

SABORES DA INFÂNCIA
Sempre passávamos as férias escolares na Lagoa do Bonfim. Durante a semana ficávamos só os irmãos. Mamãe e papai ficavam trabalhando em Natal. Às vezes meu pai aparecia no meio da semana, à noite, a gente já sabia que ele trazia algum mimo feito por mamãe. Ela mandava empadão, bolo, a gente corria para cima para saber qual era o agrado que ela havia mandado. Eu tinha uns sete anos na época e já era a cozinheira oficial da casa. Minhas especialidades eram fazer sopas prontas. Achava o máximo! Também gostava de fazer puxa puxa de rapadura. Mas a cozinha à sério mesmo quem preparava era Dona Nazinha. Quando acordávamos íamos lá em sua casa. Ela nos recebia com pão assado, ovo, bolo. Fazia tudo no fogão de lenha. Adorava comer ali na beira do fogão.

ESPÍRITO DE COMUNIDADE
No Bonfim todas as propriedades são  privadas. É um ambiente de Chácaras, com espírito de comunidade, vizinhança amiga. As relações lá são mantidas quando os filhos assumem as casas. Josimar, dono do Laranjal, Mário Galvão, a gente conhece desde criança. Essas pessoas cuidam das propriedades, mantém a lagoa limpa. O único pedido de meu pai foi para que a gente jamais venda a propriedade, que fique na família para os filhos, netos, bisnetos.

CRESCIMENTO
O que vejo de diferente hoje são as novas construções  no entorno. Tem dois grandes condomínios e mais outro está sendo construído. Ainda não sentimos o impacto, mas notamos esse volume de pessoas quando a gente pega a estrada e vê que, antes de barro, hoje ela é asfaltada até a porta da casa. Outra coisa diferente aqui de antigamente são os jet-skis, mas as pessoas ainda são moderadas.

LARANJAL DIZIMADO
A única coisa que eu realmente lamentei muito foi o fim do grande laranjal de Josimar, que foi dizimado com a construção de um condomínio. Era uma plantação de laranjas antigas, lindas, doces. Me deu um aperto, não ficou um pé para contar história.

A LAGOA QUE ENGOLE TUDO
Quando chovia a lagoa saía arrastando árvores, troncos, galhos de mangueiras. A gente achava o máximo subir nos troncos e mergulhar de cima deles. Quanto maior o galho, maior o desafio. Era o nosso mundo de aventura. Uma coisa que lembro bastante também é de assistir a água bater na porta da casa. Já houve casas próximas à lagoa que chegaram a ser engolidas pela água, a nossa quase foi. Papai precisou construir uma outra, mais recuada, e demoliu a primeira. O Clube dos Caçadores também já teve problema. O restaurante, que era sempre bem frequentado, já foi engolido pela lagoa, ficou só a ponta do telhado aparecendo. O clube até mudou de lugar depois.

FUTURO DA LAGOA
Esse movimento das águas, o vai e vem das cheias da lagoa entre o inverno e o verão, tudo isso fez parte da minha infância. Hoje a gente vê que mesmo com chuva boa a lagoa não consegue mais recuperar o volume de antes, e no verão o volume sempre baixa um pouco mais. Acredito que o que afetou foi a instalação  das adutoras. O volume que se retira da água é maior do que a capacidade de se renovar, então tem períodos críticos. Não sei como vai ficar no futuro, mas vejo hoje uma preocupação maior dos moradores com o meio-ambiente. Aqui temos o IDEMA a Polícia Ambiental e uma série de órgãos que monitoram a Lagoa – até porque ela tá numa área de preservação. Sistematicamente acontecem reuniões com a associação de moradores. A associação sempre foi muito irreverente e anarquista, mas na hora de tratar dos assuntos sérios as pessoas realmente participam. Quem vive no Bonfim é amante do lugar.

O BULE
Quando estudei em Florianópolis trabalhei num restaurante em Jurerê, na beira da praia, e o mar de Jurerê é calmo, parece uma lagoa, achei um luxo aquilo. Na hora me deu um insight, lembrei da Lagoa do Bonfim. Quando retornei à Natal, reformei a casa na lagoa e coloquei em prática a ideia d’O Bule. O nome surgiu de maneira muito espontânea, uma brincadeira entre amigos. Sempre fui muito inquieta, estava sempre fazendo pesquisas, buscando novas técnicas, por causa desse jeito meus colegas me chamavam de “Ferranzinha” (brincadeira alusiva ao mestre da cozinha molecular, Ferran Adriá). Como o restaurante dele, El Bulli, ficava muito distante de todos nós (ficava na Espanha), os amigos brincaram de batizar minha cozinha de O Bule.

COZINHA SUSTENTÁVEL
Alimento é vida, é remédio. Por isso acho maravilhoso você poder pegar produtos que você conhece o dono, porque é importante a gente saber que tipo de alimento estamos entregando ao outro. Nesse sentido, eu tenho muito apreço em poder conversar com Seu Benedito, por exemplo. Ele é uma biblioteca ambulante, tem uma horta próxima daqui, sabe tudo sobre ervas. Também tenho um vizinho que produz mel, tem colmeia. Quando apareceram umas abelhas aqui em casa, na laje, chamei meu vizinho para faze a captura. Também não posso fingir que não existe os ovos de Naldo aqui da vizinhança e ir comprar no supermercado, esse não é o nosso jeito de se relacionar com a comida. Por que o alimento está no seu melhor aonde ele é colhido. Veja o caju daqui, é maravilhoso, e se você for comer caju em Portugal percebe que o gosto não é bom.

TERROIR
Convivendo em Portugal e na Espanha conheci o apreço deles pela cozinha, mesmo a cozinha rústica, o amor pelos produtos simples. E isso é uma lição pra gente, porque também temos produtos maravilhosos aqui, o que nos falta é olhar com mais orgulho pro que é nosso. As pessoas de fora sabem disso mais do que a gente. Hoje  a tapioca, um alimento de matriz, é um produtor nordestino conhecido no mundo todo. Encontrei uma Tapiocaria em Portugal feita por portugueses! Cada país tem o seu produto marcante, aqui temos boas coisas. Mas estamos sempre  querendo olhar para o vizinho, para o lugar que a gente considera mais elegante.

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