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Sujou!

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Dácio Galvão
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De graça, sempre me senti atraído e em algum momento deslumbrado pelo movimento acontecido no Brasil nos anos de 50 do século passado da poesia concreta. Mesmo aquela fase chamada por aqueles que a abominavam, de fase ortodoxa ou vulgarmente como é mais fácil de estigmatizar, de hermética, matemática ou sem sentido. Sempre seduzido por trabalhos artísticos que convergiam resultados estéticos partindo de múltiplas linguagens sintetizando e ultrapassando fronteiras estanques, não tinha como ficar alheio.

Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos foi o núcleo dominante do qual resultou o manifesto oficial. Tínhamos Wladimir Dias-Pino poeta independente e Ferreira Gullar em diálogo mais próximo do estatuto paulista. O credo concretista envolveu um repertório exigente que ia da revisão da literatura brasileira, seletos poetas, pensadores estrangeiros e novos princípios de tradução, a transcriação.

Com esses cinco escritores à frente aconteceram naturalmente divergências e distensões. Pignatari e os irmãos Campos se mantiveram unidos na diversidade de pensamento, sendo que Dias-Pino e Gullar romperiam com o movimento concretista e seguiriam trilhas próprias. Foi bom, pois daí se desdobraram os movimentos da poesia neo concreta e o poema processo. Aconteceriam os manifestos Proposição-1967 e a famosa Teoria do Não-Objeto. O carioca propunha uma poesia radicalmente visual e o maranhense uma poética de base metafísica. Debates acalorados mais de cinquenta anos depois ainda rende polêmicas na grande imprensa.

No íntimo tomei partido por aqueles que propugnavam a poesia cerebral e que criaram o neologismo por uma poética “verbi-voco-visual ou seja, o trio paulista auto denominado “Noigandres” termo provençal  aglutinado e emprestado do poeta Arnaut Daniel.

Desenvolvi contatos e trouxe para Natal, Haroldo através da Fundação Helio Galvão e Augusto via projeto Nação Potiguar. Dias-Pino o encontrei no Rio de Janeiro através do amigo Moacy Cirne. Com Ferreira só viria a ter contato pessoal quando já acadêmico num desses chás da Academia Brasileira de Letras.

Paradoxalmente anos antes me chegara às mãos quando lançado em primeira edição o Poema Sujo de Gullar. Uma porrada. Li e reli deitado na rede de uma só vez. Isso nunca antes me acontecera e nem depois. Único livro que devorei de numa só pancada. Ou de duas. Fiquei tomado. Pirado. Remetia a Drummond, João Cabral, Villa Lobos, aos experimentos concretos enfim… Fiquei desbundado, sobretudo sentindo a capacidade da extremada expressão de memória lírica ali contida ser simultaneamente associada a metalinguagem que desarticulava e implodia a sintaxe num equilíbrio raro e que nunca havia sido tocado em nenhum outro escrito. Depois devorei o Dentro da Noite Veloz e o ensaio, Vanguarda e Subdesenvolvimento. E falo paradoxal por ser tributário das teorias de quem Gullar estava a discordar numa polêmica sem fim do alardeado concretismo matemático proposto pelo núcleo de São Paulo.

O impacto que me causou o Poema Sujo permanece até hoje. Gullar é poeta múltiplo: o poema Onde Andarás foi gravado pro Caetano Veloso em 1968, há quase meio século, e depois por Adriana Calcanhoto, Maria Bethânia, Marisa Monte, Joana e Gal Costa é um fato inusitado. Cantaram poemas do poeta ainda Raimundo Fagner e Zeca Baleiro. O autor da Luta Corporal desintegrando palavras antecipava a quebra de fronteiras entre a escrita e o canto na poética (poemúsica) bem antes da opção da Real Academia sueca quando concedeu o prêmio Nobel de Literatura a um cantor-poeta, no caso Bob Dylan em 2016. Não foi menor a surpresa já agora na maturidade me reconhecer ampliado na lupa, na visão, na compreensão do que significou para a arte contemporânea a revolução da escola Bauhaus. Mas devo esse olhar, esse perceber a Ferreira Gullar pela lucidez e minucioso estudo ensaístico que fez e me debrucei deslumbrado com as revelações feitas através do seu livro-marco-zero, Etapas da arte contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta, 1985. Foram nesses escritos que pude compreender a diacronia da arte que hoje denominamos de multimídia.

Ficou para outra parada a conversa no deserto (?). É que o cineasta Sílvio Tendler havia nos proposto um café da manhã com o poeta que se foi. Morava defronte e nos sugeriu uma solução para que Gullar participasse do FLIN: gravar uma vídeo-palestra exclusiva para exibirmos na Tenda dos Autores. A ideia gorou. Agora nem café, nem conversa, nem vídeo. Mas fica, e como fica a eterna poesia.

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