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Tardes e noites de domingo

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Sanderson Negreiros
Escritor

Todas as grandes descobertas que pude alcançar na medida de um jovem provinciano, desde a invocação para contemplar a distância das constelações no universal céu noturno, até sentir a vibração da lei moral em meu espírito, todas essas descobertas tiveram início, na infância profunda ou na adolescência reveladora, com o lúdico alumbramento que o futebol me trouxe. Jogar bola foi o começo que avaliou e avalizou toda minha modesta aventura existencial. Na Rua Grande, no Ceará-Mirim, fui me encontrar, bem pequeno ainda, com a Poesia e a Liberdade, jogando com humilde bola-de-meia, domando todas as horas visíveis, defendendo uma paixão ignorada, sentindo o que, mais tarde, aprenderia com Nietzsche na lição de que a vitória é a farmácia militar da alma.

Depois, fui parar no Seminário, aos 9 anos, obrigado a uma disciplina ambiciosamente ascética, rigorosa e inapelável. Ao longo das horas, quase todas tomadas pelos exercícios de estudo e oração, o que mais me entusiasmava, entretanto, eram as duas horas por semana que tínhamos para jogar futebol. Sem perfil de craque, tornei-me, então, lá mesmo no Seminário, compulsivo leitor do que restava da biblioteca do Padre Luiz Gonzaga do Monte, o mais sábio e o mais santo que povoou, sozinho, a solidão do Rio Grande do Norte.

Aos 13 anos, deixando a vocação de levita do Senhor, fui reencontrar o futebol nos jogos do estádio Juvenal Lamartine. Recebia o dom inesquecível de novo batismo: o de ingressar nas milícias do ABC Futebol Clube, estando certo de que todo abecedista é reencarnação dos girondinos da Revolução Francesa. Assistir às partidas de futebol, nos domingos à tarde, no velho campo do Tirol, era como reencontrar o caminho dos sentimentos mais saudáveis e o entusiasmo da conquista de viver intensamente. A dádiva da alegria perfeita.

Ah, tardes de domingo, ainda hoje projetadas na minha imaginação, como um raio despedaçado que caísse do céu e me incendiasse. Ah, tardes de domingo, não vos esquecerei nunca – sois o troféu do sol.

Mas o que mais verdadeiramente dobra repiques em minha memória, já fatigada, são as noites de domingo de Natal. Íamos todos para o Grande Ponto, verdadeira ágora ateniense, escutar nas rodas as mais diversas, que se estabeleciam entre o bar Cisne e o bar de Maiorana, a oportunidade de comentar o jogo decisivo – porque todo jogo é decisivo –, acontecido ao pé dos morros do Tirol.

Para mim, tudo era revelação. As conversas rebeldes, os debates radicais, as opiniões imperiosas. Tudo aquilo interessava como se o destino do mundo dependesse de uma interpretação do que acontecera entre um jogo de ABC e América. Havia grupos formados por juízes de futebol, e os dirigentes esportivos, chamados, estranhamente, de paredros. Os demais formavam multifacetados torcedores, aprisionados pelo radicalismo e pela distinção de um entusiasmo sofrido e agressivo. O ponto preferencial de observador cauteloso era o de acompanhar as conversas em frente ao bar Cisne, onde bem me lembro que tudo convergia para o diálogo socrático entre o Prof. Antonio Soares Filho – torcedor inarredável do América – e João Cláudio Vasconcelos Machado, o grande João Machado, personagem de romance de capa-e-espada, presidente perpétuo da Federação Norte-Riograndense de Futebol. Inesquecível é o lembrar-se do Prof. Antonio Soares, de paletó e gravata, em pleno Grande Ponto, numa noite de domingo.

João Machado era o presidente do Atlético Futebol Clube, o mais pobre dos clubes, o menos ambicioso dos times, ao ponto de, certa vez, ao perguntar-lhe onde o Atlético se concentrava nas vésperas dos jogos, João explicava: “Levo todo o grupo para dormir nas areias da Praia do Meio. Os jogadores passam a noite absorvendo oxigênio. De manhãzinha, respiram iodo e, à tarde, estão preparados, técnica e psicologicamente, para qualquer duelo”. No Atlético havia um jogador chamado Paulo Tubarão, que morava na Redinha e, duas horas antes do jogo começar no Juvenal Lamartine, ele atravessava o rio Potengi a nado; chegava no cais da Tavares de Lira e, depois de vestir calção e camiseta, partia em destemida corrida em busca do estádio. Depois do jogo, cumpria a missão de retorno: embalava carreira do Tirol para a Ribeira; mergulhava no rio Potengi e ia dormir na sua casa de beira de praia, do outro lado da cidade. Tempo em que a Redinha era a esquina onde os ventos atlânticos e os alísios ansiosos preferiam para dar suas curvas; e voltarem para a África, pacificados.

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