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Testemunhos de Istambul (III)

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Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

“Flanar é uma ciência, é a gastronomia dos olhos”, disse certa vez Honoré de Balzac (1799-1850) em sua “Fisiologia do Casamento” (“Fhysiologie du Mariage”, 1829). E vai aí a minha resposta para aqueles que me acusam – injustamente, claro – de não querer passar horas em restaurantes, discutindo a pimenta do risoto ou o aroma amendoado do vinho, por motivos, segundo eles, econômicos. À moda de Baudelaire (1821-1867), eu prefiro flanar a comer. Só isso.

E embora não seja propriamente um estudioso da arte de flanar, um Victor Fournel (1829-1894) ou um Walter Benjamin (1892-1940), sei muito bem que as grandes cidades são como matérias-primas para a criação e a deambulação por suas ruas é a melhor forma de conhecê-las.

Sem destino certo, mas atentos a tudo, foi isso o que nós fizemos naquele resto de dia em Istambul: flanamos, à procura, mesmo que inconsciente, de inspiração para esta ou outra crônica.

Vagamos sobretudo pelas calçadas, pelas esquinas e pelos comércios da região Sultanahmet, tão cheia de história e estórias para nos contar. Essa é uma área de Istambul, registro logo, cheia de atrações para o turista, tão próximas umas das outras que podem ser visitadas seguidamente a pé, de preferência muito calmamente. Para se ter uma ideia, a Praça de Sultanahmet, um ponto de referência da região, fica em frente à Basílica/Museu de Santa Sofia. Do lado oposto da praça, fica a Mesquita Azul. Ao lado da Mesquita, fica o antigo Hipódromo, ou o que restou dele (como o Obelisco Egípcio e as Colunas de Serpentina e de Constantino Porfirogeneta), que dominou a paisagem da antiga Constantinopla por mais de mil anos. Hoje uma praça alongada, é ao derredor do Hipódromo que ficam alguns dos melhores museus de Istambul, com destaque para o Museu de Artes Turcas e Islâmicas. De quebra, Sultanahmet também é cheia de hóteis, restaurantes e comércios de rua, que se acham exatamente onde outrora, no apogeu do Império Bizantino, ficava o Grande Palácio dos imperadores romanos no Oriente, entre eles os grandes Constantino (272-337), que deu nome à urbe (Constantinopla), e Justinano (482-565), este último, para quem não sabe, o mentor do importantíssimo “Corpus Iuris Civilis”. Vagar por ali é, de fato, agradabilíssimo.

Mas não são só os edifícios e as ruínas de uma metrópole que contam para o “flaneur”. Como explica Eric Hazan em “A invenção de Paris: a cada passo uma descoberta” (“L’invention de Paris: il n’y a pas de pas perdu”, publicado no Brasil pela Editora Estação Liberdade, 2017), seja Paris ou em Istambul, nas esquinas e nas calçadas exploradas, “é possível se cruzar com uma mendiga russa e uma condessa adúltera, um grande cirurgião, um carregador de água auvério, um trapaceiro, um futuro ministro, um policial – Vidocq, Javert, Peyrade – ou um tabelião falido”. E “tudo tem vocação para se tornar assunto, de drama, soneto, canção, conto, e todos os assuntos são iguais entre si, ainda que não haja mais relação obrigatória entre forma e conteúdo”.

Pois foi precisamente flanando por Sultanahmet que descobrimos o melhor do povo da Turquia. Primeiramente, na pessoa do proprietário de uma loja de doces (a “Orient Delight & Spice Shop”, ainda recordo o nome) que, casado com uma portuguesa, nos foi, falando o idioma de Camões (1524-1580) e Pessoa (1888-1935), de uma gentileza sem igual. De tão gentil, nos fez sair do seu comércio cheios (o estômago e as sacolas) de “delícias de Istambul”.

Mas foi sobretudo o gerente de um pequeno hotel (o “Seven Hills Hotel”, também não esqueci) que nos fez ganhar o dia. Ao nos ver fotografando, com imensa dificuldade, a fachada do majestoso “Four Seasons Hotel Istambul at Sultanahmet”, nos convidou para subir ao terraço do seu hotel, de alguns andares, sem qualquer custo e sem precisar consumirmos coisa alguma, apenas para que pudéssemos sacar as fotos que desejávamos. Já era fim de tarde. O sol se punha. Do alto, a vista do tríplice encontro entre o Chifre de Ouro, o Estreito de Bósforo e o Mar de Mármara, da Mesquita Azul, da Basílica de Santa Sofia, do Palácio Topkapi, das ruas e praças ao redor era simplesmente sem igual. Acabou que tomamos uma taça de vinho. Experimentamos, mais uma vez, um delicioso café turco. E assim terminamos, com chave de ouro, aquele que era o nosso último dia na capital de impérios.

Esse homem desconhecido talvez nem desconfie do bem que nos fez. Com seu gesto simples, mas gentil, ele acabou nos dando o melhor fim de dia de toda a nossa viagem. E me deu, claro, um assunto para encerrar esta nossa conversa.

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