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Tingido pelas cores do Seridó

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Por Gustavo Porpino*
especial para TN

O artista plástico Francisco de Assis Córdula, 78 anos, é um homem talhado pelas lembranças do Seridó de seu tempo de menino. Trocou o sertão de Acari, cidade da sua infância, pelo cerrado de Abadia de Goiás há quarenta anos. Pintor primitivista consagrado em Goiás, onde já fez dezenas de exposições, Fé Córdula, como assina suas telas, não vem ao Rio Grande do Norte desde 1974. Sente saudades, ao ponto dos olhos encherem-se de lágrimas quando recorda passagens de sua vida, mas não pensa em voltar. Uma mostra de sua obra, no entanto, desembarca na Pinacoteca do Estado em agosto, na primeira exposição individual do artista na sua terra natal.
Em sua casa de Abadia de Goiás, Francisco de Assis Córdula recebeu o jornalista Gustavo Porpino e relembrou a Acari de menino: - O Seridó nunca saiu de mim. Sou um sertanejo, vou morrer desse jeito
“Expor em Natal é a realização de um grande sonho”, salienta. O outro é levar algumas de suas pinturas para Tel Aviv, em Israel. O projeto está em fase de viabilização com apoio do Ministério da Cultura.

O “Fé” do nome artístico é uma homenagem à companheira Maria das Dores Feitosa, uma professora caicoense que o acompanha há 37 anos. “É ela quem me apóia, me incentiva. O Fé vem de Feitosa”. Ambrósio Córdula, um dos sete filhos do pintor, é escultor santeiro em Acari.

Na casa rústica da chácara onde mora, em meio a copaíbas, jatobás e aroeiras, Córdula divide o espaço com a mulher Maria das Dores, a filha Maria Alice, vinte cachorros e nove gatos. Nos galhos das árvores não é difícil encontrar saguis, e os pássaros, assim como em suas telas, são presenças constantes.

Embora enfrente a diabetes – já teve uma perna amputada – e problemas cardíacos, Córdula continua pintando diariamente. Suas telas saltam aos olhos com personagens que parecem ter saído dos sertões do Seridó, muitas cores e um estilo muito peculiar, daqueles que só os grandes pintores conseguem imprimir em suas obras.  “Quando eu pinto o primitivo, o sertão está na minha arte”, comenta.

Observar uma pintura de Fé Córdula causa a mesma impressão de estar diante de um quadro pintado por Dorian Gray, Maria do Santíssimo (1890 – 1974), Thomé Filgueira (1939-2008) ou Assis Marinho, pintores potiguares de diferentes escolas, mas também com inventividade e estilos inconfundíveis.

Curiosamente, Fé Córdula precisou ser conquistado pelo estilo mais marcante de suas várias formas de arte. Antes de adotar o primitivismo, fazia artesanato em couro, esculturas em madeira e até em metais. As portas de metal da Embaixada da Síria, em Brasília, são obra dele. “Detestava primitivo. Achava que era sem cultura, sem significância. No entanto, é a raiz, a base de tudo”, salienta.

O pintor destaca que o primitivismo harmoniza diversas cores. “A beleza e a alegria aparecem. Sou apaixonado pelas cores. Estudei cromoterapia. Conheço bem as cores e a bíblia”, ressalta. A religiosidade aparece em suas telas nas paisagens bucólicas do interior goiano ou potiguar, com seus cruzeiros, capelinhas, festas religiosas e a fé da gente simples.

São Francisco de Assis, o santo que o pintor carrega no nome, é tema recorrente. “Ele me sustenta”, diz, para explicar que as telas com o santo são as mais valorizadas.

O pintor português Antônio Batista de Souza, conhecido como Antônio Poteiro, falecido em 8 de junho de 2010, em Goiânia, onde passou a maior parte da vida, é reverenciado por Córdula como o maior pintor primitivista que conheceu. Córdula lembra ainda da potiguar Maria do Santíssimo, que encontrou algumas vezes em São Vicente (RN).  Maria era avó de Iaponi (1942 – 1996) e Iaperi Araújo, igualmente pintores. “Eu sempre ia à casa de Poteiro, e Iaponi passava férias comigo, em Florânia”, recorda Córdula.

O Chico do padre

 “Desde pequeno vivia fazendo arte”, comenta, sem esconder o riso irônico, como quem admite que foi um menino travesso. Córdula frequentou os tradicionais Grupo Escolar Thomaz de Araújo, em Acari, e Ginásio Diocesano, em Caicó. “Sempre tirei notas péssimas, mas em desenho e religião eram ótimas”, lembra.

Criado pelo padre Ambrósio, vigário de Acari falecido em 1957, ganhou o apelido de Chico do padre pelos colegas de infância, entre eles o médico Paulo “Balá” Bezerra e o professor Geraldo Batista. “A infância é a coisa mais marcante. É quando o homem está mais próximo de Deus”, afirma, enquanto fixa o olhar num ponto distante para puxar da memória as lembranças que gosta de ter.

As festas de padroeira, a chegada do inverno e das safras estão sempre presentes em pensamentos. “Sinto até o perfume do ambiente, o clima…”, diz. “O Seridó nunca saiu de mim. Sou um sertanejo, vou morrer desse jeito”.

Certa vez, Córdula retratou suas lembranças de Acari numa única tela. Lá estavam o fogueteiro da festa da padroeira Nossa Senhora da Guia; Cicinho, um negro vestido sempre de branco que seguia a banda de música; e o maestro Felinto Lúcio Dantas regendo a banda. “Queria que essa tela tivesse ido pra Acari, mas terminou numa galeria de arte de Brasília”, recorda. A arte de Fé Córdula ocupa lugar de destaque também em galerias de arte da histórica Pirenópolis (GO), em casas de fazenda do interior goiano, e em vários imóveis públicos de Goiás. “Por aqui, devo ter umas duas mil telas espalhadas”, diz.

Até 7 de agosto, Córdula participa da exposição coletiva Arte Sacra Popular, no Museu de Arte Sacra de São Paulo. A chegada ao Rio Grande do Norte, de onde saiu para conviver com a natureza do Cerrado, parece tardia, mas não sem tempo. “É uma alegria muito grande, mas não vou. Vão os quadros”. 

* Jornalista da Embrapa (Brasília-DF)

O encontro

São 11h em ponto de 8 de julho de 2011. O dia começou com 15 graus, mas a essa hora a temperatura já bate nos 30. Consegui vencer os 260 Km entre Brasília e Abadia de Goiás e chegar na hora marcada. Como combinado, paro em frente à placa “Condomínio Copacabana”, na GO 040, saída de Goiânia. Ligo para o celular de Chico, que demora um pouco a atender. Estava tirando um cochilo.

Quinze minutos depois, a poeira sobe na estrada de terra batida que adentra a paisagem de Cerrado na margem direita da rodovia. O carro dá sinal de luz, e logo a seguir, o senhor de barba e cabelos grisalhos pára ao meu lado e sorri pela janela do automóvel. “Pode me seguir, é logo ali”.

Uns dois quilômetros para dentro, chegamos à porteira da chácara. A filha abre e Córdula estaciona ao lado da casinha que funciona como seu ateliê. Permanece imóvel, com olhar fixo no para-brisa, por quase um minuto. Desço e me aproximo do carro dirigido por ele.

O pintor abre a porta, pega as muletas e apóia no chão. Ao descer do carro, já com o olhar fixo em mim, pergunta se eu acredito em destino. Titubeio, e digo que não, mas sem muita firmeza. “Eu também não”, diz.

Córdula tem jeito de ermitão e, a exemplo do contemporâneo Oswaldo Lamartine, conhece bem a genealogia das famílias seridoenses. “Nunca imaginei conhecer um neto de Manoel dos Cocos e Dona Amélia”, destaca. Córdula senta na cadeira de rodas e seguimos até a varanda. Eu sentado numa rede e ele ao meu lado, emocionado e cheio de histórias para contar.

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