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Todos os sentidos de Belchior

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Thiago Gonzaga
Escritor

Um dos maiores letristas da música popular brasileira, Antônio Carlos Belchior (1946-2017) sempre dialogou com as artes e a literatura através da intertextualidade: José de Alencar, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Edgar Allan Poe, além de Bob Dylan e The Beatles, são alguns dos que ele notoriamente parafraseou em seu versos. 

Belchior

Compositor refinado, conhecedor de literatura e língua latina, Belchior usava as suas palavras como instrumento de militância a despertar consciências. Interessante observar os muitos diálogos que ele manteve com outros textos literários e canções. Sua importância está, de modo especial, na profundidade intelectual da obra.

Talvez, um dos diálogos mais evidentes de Belchior tenha sido em “Comentários a Respeito de John”, parceria com o potiguar José Luiz Penna, explícito nos versos “A felicidade é uma arma quente”, do clássico “Happiness is warm gun”, do LP The Beatles ou “Álbum Branco” de 1968. No início da canção: “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho/Deixem que eu decido a minha vida/Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol/porque bate lá o meu coração”.  Clara alusão ao fim da banda inglesa, e ao desejo de Lennon de seguir carreira solo e de reencontrar Yoko Ono.

Em “Medo de Avião”, o poeta cearense além de sugerir o medo de ser exilado, em época de ditadura, fez referência à banda britânica nos versos “I wanna hold your hand”. Na letra de “Velha Roupa Colorida”, temos “Like a Rolling Stone”, de Dylan, e nova alusão aos Beatles com “She’s leaving home”, além do “Corvo” de um ícone da literatura, Edgar Allan Poe.

Em “Pequeno Mapa do Tempo” temos referência a antiga canção folclórica popular ao tempo da colonização do Piauí, (“Meu boi morreu/ o que será de mim?”) ,além de crítica indireta ao regime militar. Começa com “eu tenho medo e medo está por fora”, e segue com “eu tenho medo que chegue a hora em que eu precise entrar no avião”, alusão ao exílio.

Em “Como Nossos Pais” enxergamos “Na parede da memória/Essa lembrança/É o quadro que dói mais”, alusão a Carlos Drummond de Andrade, e em “A Palo Seco”, a João Cabral de Melo Neto. Em “Tudo Outra Vez”, “a normalista linda” remete ao samba de Benedito Lacerda e David Nasser, cantado por Nelson Gonçalves, e à valsa “Danúbio Azul” composta por Johann Strauss II. Em “Conheço o Meu Lugar”, há referências a García Lorca e a Fernando Pessoa; em “Apenas um Rapaz Latino- Americano”, “tudo é divino, tudo é maravilhoso” lembra Caetano Veloso. Caetano por sinal também é citado em “Coração Selvagem”, nos versos “Meu bem que outros cantores chamam Baby” (reporta-se à canção “Baby”, de Veloso).

Em “Divina Comédia Humana”, alusão a Dante e ao poeta parnasiano Olavo Bilac, nos versos “Ora direis, ouvir estrelas/certo perdeste o senso/Eu vos direi, no entanto”… Em “Arte Final” alude a Hemingway: (“Não perguntes por quem os sinos dobram”), além de dar pista da sua vida desprendida: “Alguém se atreve a ir comigo/Além do shopping center?”. Como ele já tinha feito em “Coração Selvagem”: “Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo”. Outro sucesso  de Belchior, “Alucinação”  cita clássico filme de Stanley Kubrick:  “Longe o profeta do terror/Que a laranja mecânica anuncia”.

São inúmeras menções às artes de modo geral em suas canções. Poderíamos citar ainda referências dele a Álvares de Azevedo, “Lira dos Vinte Anos”; Erasmo de Roterdam, “Elogio da Loucura”; Camilo Castelo Branco, “Amor de Perdição”; e  Rimbaud na canção “Os Profissionais”, a Baudelaire na canção “Vício Elegante”, a Afonso Arinos com “Retórica Sentimental”, a Euclides da Cunha,  Zé Dantas e Luiz Gonzaga em “Noticias de terra civilizada”, entre vários outros em dezenas de suas músicas, como Lord Byron, Castro Alves, Shakespeare, William Blake….

Uma das mais inteligentes críticas à censura imposta pela ditadura militar está em “Apenas um Rapaz Latino-americano'” (1976): “Não me peça que eu lhe faça/Uma canção como se deve/Correta, branca, suave/Muito limpa, muito leve/Sons, palavras, são navalhas/E eu não posso cantar como convém/Sem querer ferir ninguém…”

Entre seus grandes discos da sua fase áurea estão “Alucinação” (1976), “Coração Selvagem” (1977), “Todos os Sentidos” (1978),” Era uma Vez um Homem e Seu Tempo” (1979) e “Objeto Direto” (1980). Esses são apenas alguns dos LPs mais conhecidos de Belchior, que deixou vasta obra.

As letras de Belchior não devem ser apenas escutadas e aplaudidas, deveriam ser objeto de reflexão e estudo, inclusive em todas as escolas do País como uma das maiores expressões poéticas da MPB. Em um período sombrio como o que vivemos atualmente no Brasil, sobretudo quando vivenciamos uma espécie de nova ditadura, devemos ter esperanças e lutar por mudanças como sugeriu o menestrel cearense na letra de “Como Nossos Pais”.

 Fica evidente que Belchior abriu mão do show business, da música comercial, para investir em uma obra poética duradoura e com força crítica, o que certamente colaborou para seu afastamento da mídia. Por esses e outros motivos é que a obra do cantor e compositor cearense será eternizada.

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