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Transpondo limites

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Cláudio Emerenciano
[Professor da UFRN]
As civilizações expressam, essencialmente, a maneira de ser, criar, conceber, transformar, sentir, cultivar e discernir dos homens que as integram. É impossível dissociar  sentimentos predominantes numa civilização das suas manifestações artístico-culturais. Foi o caso da Grécia antes de Roma, atestam André Bonnard em “A civilização grega” e Arnold Toynbee em “O Helenismo”. Mas uma dominou a outra. Carlos Lacerda, no livro de crônicas “O cão negro”, imergiu na “Oração da Acrópole” de Ernest Renan. Seu título “Guia sobre a Oração da Acrópole”. O intérprete fez jus ao criador: texto profundo, conciso, erudito, universal e atemporal. Inicialmente expôs: “Foi na Acrópole que, tomado pelo prestígio dos séculos, dominado pela força da arte e da história, Renan compôs essa página que pretende ser uma oração racionalista e acaba por ser um cântico de fé profunda. À força de renegar ele se confessa. E assim, onde escreveu um manifesto contra a religião se lê um ato de contrição”. Eis um dos trechos da “confissão”: “Quando vi a Acrópole, tive a revelação do divino, como tivera na primeira vez em que vi o Evangelho viver diante do Vale do Jordão”.

Os arqueólogos John Dominic Crossam (canadense) e Jonathan L. Reed (americano), das Universidades de Yale e Harvard, no livro “Em busca de Jesus”, descrevem a configuração aliciante e esplendorosa dos vales de Israel à época do Cristo. Confirmam descrições do Antigo Testamento. A escritora Anne Rice, em dois livros sobre a infância e a juventude de Jesus, também reconstituiu a paisagem verdejante da Galiléia, que gravitava em torno das aprazíveis margens do seu “mar”, o lago de Genesaré. O grande escritor Sholem Asch (judeu nascido na Polônia), em seus magníficos “O Nazareno” (pelo qual foi indicado ao Nobel da literatura) e “O apóstolo” (sobre a vida de São Paulo), mergulhou na simbiose entre as culturas judaica, grega, egípcia e, por consequência, romana (latina). Esses aspectos me instigaram a compreender a “aventura” do homem na vertente do tempo. Sempre em busca de respostas para seus questionamentos existenciais e, por fim, ascensão a Deus.   

Também aconteceu com os bárbaros. Invadiram Roma e foram subjugados pela cultura dos vencidos. Repetiu-se a anterior influência grega na civilização romana. Gore Vidal, em “Criação”, sustentou a tese de que os valores de uma civilização, mesmo decaída, sobrevivem pelo inevitável processo de interação entre os povos. Há, em todos os tempos, uma circulação natural de ideias e percepções entre as pessoas. A obra de Homero, tanto a “Ilíada” quanto a “Odisseia”, antes de ser difundida pela escrita, no mínimo durante dois séculos foi objeto de transmissão oral. O mestre Cascudo, em “Cinco livros do povo”, comprovou que lendas medievais se propagaram no Brasil colonial através da literatura oral, depois convertida em cordel. Mas há uma ligação, um elo que transcende e surpreende, em todos os tempos, muitos detentores de poder: a vocação do homem para amar e viver a vida no âmbito de suas opções pessoais, íntimas, indevassáveis e exclusivas. Esse atributo individual, domínio de toda a humanidade, confere um peso e um sentido às relações humanas. Inova a cada instante a dimensão da fraternidade, da partilha, das alegrias e das esperanças que pontilham o viver de cada um. Mais do que isso: harmoniza e assemelha todos os homens, como se cada um possuísse o mesmo rosto, os mesmos sonhos, as mesmas esperanças e o mesmo sorriso.

Quando me defronto com uma questão de relevância social, além de refletir, especialmente no silêncio da madrugada, recorro à literatura, que reúne tudo quanto o homem é, foi e será em sua trajetória na vida. Inspira-me a fé cristã, tanto em termos dogmáticos e imutáveis, quanto dinâmicos, ilimitados. Amplia-me o descortinar da vida, dos homens, da Criação e do Criador. Realimenta-me a fé na Boa Nova da redenção pelo amor,  vivenciada e testemunhada por Jesus Cristo. Opção existencial, pessoal e transcendental.  Assim me insurjo contra toda e qualquer forma de cercear o homem em seus direitos legítimos e naturais. Inclusive quando se invoca, para isso, motivações falsamente “nobres”. A falsidade, a maldade em suas nefastas manifestações, a mentira e a solércia são expressões das trevas. A luz, mesmo tênue, devassa-as. Enseja ao homem trilhar os caminhos da verdade e da justiça.

Um grande escritor é como um escultor genial. Exemplo de Miguel Ângelo que, de um bloco de mármore, forjou obras-primas como o “Moisés” e a “Piettà”. José Lins do Rego, em crônica (1945), contou como conheceu Graciliano Ramos num cartório em Palmeira dos Índios. Idos de 1936. O “mestre Graça” (seus amigos assim o chamavam) já escrevia e falava em inglês, francês, espanhol e italiano. Na época vertia para o português a “Divina Comédia”. Graciliano foi genial como escritor. André Gide o considerou “um dos maiores estetas na arte de escrever do século XX”. Sua obra transpôs limites inimagináveis. Lucila Soares em “ Rua do Ouvidor 110” (sede da Livraria e Editora “José Olympio”), narrou episódio pitoresco e inusitado. Getúlio Vargas, postulando vaga na Academia, frequentou (anos 40) encontros de escritores na Editora. Ali Graciliano tinha “cadeira cativa”. Graciliano foi perseguido e preso pela ditadura (“Memórias do Cárcere”). Getúlio, querendo agradá-lo, ofereceu-lhe a direção do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). Graciliano recusou e disse que, para poupar futuros gastos investigativos da polícia, informava-lhe que iria viajar brevemente à Europa Ocidental e à União Soviética. Mas Rachel de Queiroz, sua amiga íntima, em suas “Cem crônicas escolhidas” (1989), dimensionou Winston Churchill (crônica publicada em 15/02/65): “Acima de tudo ele foi como uma descarga fulgurante de energia, que em dado momento galvanizou o mundo e o fez erguer-se quase acima da condição humana”. Churchill também ultrapassou limites, desde 1933, para acordar o mundo. Albert Camus (editou em francês “Vidas Secas” e “São Bernardo”), em “A Peste”, desvendou alegoricamente fins e limites do aprisionamento de uma coletividade em Oram. Tudo deságua em submissão e infelicidade individual e coletiva. Enquanto em “O Estrangeiro”  antagonismos e preconceitos agrilhoam o principal personagem. Até seu trágico fim.  O que há agora nesse mundo louco? Diz o Eclesiastes: “Nada de novo abaixo do sol”. Será?

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