Fui sincero. Falei à remetente que ela fosse mais atenta, para não dizer obtusa, termo bem mais adequado à sua capacidade intelectual.”Esperança é uma coisa tão bonita,” ainda insistiu, eu de cartãozinho na mão, logo despachado para a primeira caixinha de entulhos da casa de minha avó.
As duas semanas finais de todo ano são alucinógenas, tóxicas. Maltratam o espírito. Ano Novo, vida nova, é cascata, ou pelo menos sempre foi nas minhas imediações.
Durmo no dia 31 à noite, cedo, para, na manhã seguinte, encontrar o mesmo travesseiro amarrotado. Nada novo. A hipertensão e o diabetes estão aqui, cautelosamente controlados, mas não vão embora pelo fato de 2022 estar começando exatamente neste domingo.
Vou olhar pela janela e observar o mesmo e asfixiante cinza de todos os domingos de qualquer ano. O silêncio e o movimento lento e lerdo dos carros que ousam deixar suas garagens, guiados por homens e mulheres compenetrados e confiantes no futuro próximo porque afinal vestiram branco noite passada. O branco que pode ser do babalorixá, do espírita, do defunto bem arrumado para a ultima viagem(para onde?).
O domingo, e hoje, centro batido do ano que chega será sempre igual, termina para mim pouco depois da uma da tarde. Quando o sol começa a se despedir, vem aquele ardor dolente de solidão. Nada cura. A imensidão em concreto dos edifícios e os fiapos da floresta que ainda luta para agasalhar o bairro são o desenho coerente do real e do ilusório das noites passadas proximamente.
No Ano Novo não há assim uma canção definitiva. No Natal, repete-se até quebrar se for um disco de vinil, aquela música com Simone. “Então é Natal”, com versinhos bem medíocres e óbvios, porque o óbvio por natureza é medíocre: “Então bom Natal/E um Ano Novo também/Que seja feliz quem/
Souber o que é o bem”.
Quem sabe, de verdade, o que é o bem? É aquele amontoado de esmoleres nas imediações da Rua Mermoz, pertinho do Viaduto do Baldo?
Aquilo é o bem? E ainda espantam os miseráveis que o clima natalino e de Ano Novo tampouco dispensa do carimbo de nulidades, indigentes, espectros sociais, invisíveis em seus mantos rotos, surrados, malcheirosos. O Ano Novo deles foi o do ano passado, retrasado e será o do próximo 1º de janeiro.
Não há espírito de cooperação, união, amor e solidariedade nos hospitais públicos, onde se preparam à morte os infelizes que, de prêmio, ganham a transformação em estatística macabra nas doenças transmitidas pela falta de socorro e a própria ignorância.
O Ano Novo também deles? Entrou pela perna de um pinto, saiu pela perna de um pato e quem quiser que conte mais quatro. Lorotas usando Deus como pretexto.
Arquive suas esperanças e espere os retornos de sua fé, seja ela qual for, do terço ao tambor. Ouça as homilias cujo resultado prático e verborrágico se repete, como o calendário de folhinhas caindo, uma a uma, a cada 24 horas em que as seguintes são as mesmas, sem nada de novo.
Experimente molhar os pés no mar. É um impulso sempre novo. Os sargaços da alma são expulsos. Mesmo que voltem, o sal e a imensidão do oceano tratam de amenizar a verdade que estabelece tudo sempre igual.
Maratona
Cinquentenário
Times
Ano Novo