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Um circo rodrigueano… no sertão da Princesa

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Maria Betânia Monteiro – repórter

Entre uma ocorrência e outra, o Delegado da Polícia Civil Aldo Lopes de Araújo escolhe os verbos mais ativos, os substantivos mais significativos e os adjetivos mais variados para dar voz e vez aos personagens e às histórias de seus romances. Foi assim com “O Dia do Cachorro”, vencedor do prêmio Câmara Cascudo em 2006 e que ganhou a apresentação de Ariano Suassuna, numa nova edição; e está sendo com “O Coronel e a Dançarina”, título provisório de seu mais novo livro. A obra do delegado foi escolhida entre outras duas mil inscritas num edital de fomento à literatura, do Ministério da Cultura. O resultado foi divulgado ontem, no Diário Oficial da União.

Autor de “O Dia de Cachorro”, o escritor Aldo Lopes teve seu novo romance “O Coronel e a Dançarina” selecionado pelo edital de literatura do MinC, no valor de R$ 30 milEntre os dois mil inscritos, sessenta foram selecionados em todo o país. Aldo foi o primeiro da lista entre os escritores nordestinos. Em meio a euforia do resultado, Aldo recebeu a reportagem do VIVER na delegacia para falar sobre o livro e o seu processo de criação.

‘O Coronel e a Dançarina’ é um romance ambientado em Princesa, sertão da Paraíba, a 440 km da capital João Pessoa, durante o ano de 1930. Aldo conta que naquele tempo o governo havia estabelecido a política do arrocho fiscal e do enfraquecimento dos coronéis, batendo de frente com os interesses da aristocracia rural sertaneja.

Insatisfeito com as metas de governo do presidente João Pessoa, o coronel Zé Pereira rompe com o governo e institui o Território Livre de Princesa. Tem início a chamada Guerra do Algodão, deflagrada a partir da criação do estado independente, com bandeira, hino, constituição e o recrutamento de 2.500 jagunços para fazer frente ao avanço das tropas do presidente João Pessoa que pretendia destruir o reduto dos rebelados.  É neste cenário conturbado, de clima tenso, que o circo de Epaminondas, alheio até então aos acontecimentos, se instala. A partir daí a narrativa ultrapassa as fronteiras do real para seguir a seara do imaginário. O foco narrativo se desloca temporariamente para o cotidiano destes mambembes, personagens de ficção, e vai cuidar dos seus dramas internos que se exacerbam a partir do momento em que interagem com os habitantes da cidade, a essa altura fragilizados pelos efeitos da guerra.

Epaminondas Atirador de Facas, ferrenho defensor da arte circense, tenta consolar seus companheiros de lona com promessas de melhores dias longe de Princesa, tão logo acabe a luta e eles possam ir embora. Por conta do cerco à cidade e com o público já saturado da mesmice das apresentações, a trupe vive a maior pindaíba de sua história. É quando Epaminondas decide selecionar talentos para aumentar o seu quadro de artistas e assim oxigenar a bilheteria.

O cinema Santa Maria não tem outra saída senão fechar. Os piquetes das tropas do governo não deixam entrar nada com destino a Princesa. Os malotes de filmes são confiscados, da mesma forma que o são as provisões de alimentos, remédio e combustível. A cidade só não mergulhou em total desabastecimento porque o coronel Zé Pereira se prevenira com estoques.

A partir daí o circo passa a apostar nas figuras pinçadas das filas que se formaram diante das lonas, criaturas bizarras como o Homem-Tronco e os seis anões, sem esquecer o urubu dançarino, ave de estimação de Heliodoro. Escolhido para o papel de Jesus Cristo, Heliodoro mata com uma facada o soldado romano em pleno palco, por causa de uma disputa de amor pela dançarina Mara Rúbia, sepultando definitivamente a atrapalhada temporada de encenação da Paixão de Cristo.

A cena se desenvolve em meio a um linguajar fluido e marcado por expressões fortes e pictóricas. O autor escreve: “Como desfecho, o que podia ser um beijo ou uma fala qualquer de mansidão, acabou sendo o mais inesperado: Jesus arrastou de dentro da túnica uma faca e enfiou na barriga do legionário. O infeliz só fez botar os grandes olhos para fora e gemer como um porco na hora do abate. Como se não bastasse a determinação homicida do golpe, Jesus ainda remexeu a munheca para cima, para baixo e pelos lados, só de ruim, aumentando o estrago nas vísceras e nas tripas do infeliz, antes mesmo que este – banhando em sangue e agonizando – desabasse sobre o tablado do palco para nunca mais se levantar”.

Delegacia é celeiro de tipos humanos

Aldo Lopes revela que sua inspiração parte da convivência com os homens e mulheres que chegam à delegacia no limite de sua humanidade. “Este ambiente é eletrizante”. É lá onde  homens e mulheres, vítimas ou algozes, expõem suas fraquezas e grandezas. “A delegacia me ensinou o que universidade nenhuma conseguiu, aliás, uma delegacia é o lugar mais importante do mundo, mais importante do que os hospitais e os cemitérios”. Apesar dos tipos humanos que circulam pela delegacia ser sua fonte de inspiração, nenhum transformou-se em personagem de seus romances. “As experiências que eu tenho aqui são cristalizadas e as aproveito tempos depois”.

O Coronel e a Dançarina não tem data para ser lançado, já que o edital do MinC tem a finalidade de subsidiar os escritores em seu processo criativo, garantindo-lhes recursos que poderão ser usados ao desejo do autor. “A partir do resultado dos escolhidos, as editoras despertam o interesse publica-los”, diz Aldo, que vai receber R$ 30 mil do MinC.

A argumentação do autor

“Falo dos temas de minha origem com legitimidade, pois recebi, na rede dos primeiros sonhos, a informação pela oralidade. Ninguém melhor do que eu, portanto, para lançar mão dessa maravilhosa matéria-prima e escrever um romance de fundamental importância para a compreensão de um pedaço do Brasil que ninguém até hoje — pelos menos em forma de narrativa — retratou.

Cresci ouvindo histórias do meu avô Manoel Lopes Ronco Grosso, comandante de tropas do coronel Zé Pereira. Quando ele morreu, eu tinha oito anos, mas seus relatos estão até hoje em minha memória.

Mais tarde, depois que fui estudar na capital, percebi a importância daquelas narrativas. Era grande o interesse pela história da minha aldeia, sobretudo no ambiente universitário. Tal constatação alimentou em meu espírito, durante muito tempo, a necessidade de um dia escrevê-las.

Essa intimidade quase visceral com os relatos do imaginário popular acerca da campanha de Princesa, aliada à popularidade quase mitológica do caudilho Zé Pereira — um estadista dentro dos limites da tragédia sertaneja — foi o que mais me motivou a levar adiante o projeto do romance.

A trama rememora fatos históricos cujos ferimentos ainda não cicatrizaram de todo e traz para dentro desse “saco de gatos” a contribuição oral das histórias reinventadas a partir do que aprendemos em tempos imemoriais com os homens das caravelas vindos da Península Ibérica. A aparente confusão entre acontecimentos reais e aqueles que se suspendem pela via do imaginário confere verossimilhança ao romance.

A matéria de que trata o meu projeto ocupa um espaço vip no imaginário da população. Tal qual a Verona de Shakespeare, em Romeu e Julieta, rachada entre Montequios e Capuletos, a Paraíba, oitenta anos depois, ainda vive resquícios das intrigas entre Perrepistas e Liberais, os dois partidos políticos que se engalfinharam em 1930.

A saga do rei João Ferreira, em São José do Belmonte, sertão de Pernambuco, foi tema de romances de José Lins do Rego (Pedra Bonita) e Ariano Suassuna (A Pedra do Reino). Por que então a saga de Zé Pereira com seu Território Livre não dá romance? Será que vamos ter de esperar que apareça um Mário Vargas Lhosa para escrever outra guerra do fim do mundo?”

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