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Um precursor do feminismo

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Ivan Maciel de Andrade                                                                                                           
Procurador de Justiça e professor da UFRN (inativo)

Estamos numa fase da história republicana em que surgem no topo do poder (exatamente lá) as mais inesperadas e preconceituosas manifestações de misoginia, de menosprezo às mulheres. Foi com base nessa observação que fui motivado a relembrar a contribuição de Machado de Assis para a valorização do sexo feminino, em sentido oposto a esse posicionamento machista (androcentrista) e patriarcal. Justifica-se esse retorno a Machado não apenas por se tratar de nosso maior escritor e de um dos mais importantes ficcionistas do século XIX, mas também pelo fato de que as personagens femininas de seus romances e contos adquiriram duradoura e absolutamente merecida celebridade.

A mais famosa delas é Capitu, do romance “Dom Casmurro”. Para o agregado José Dias, o homem dos superlativos, Capitu tinha “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Para Bentinho, com quem namorou adolescente e veio a se casar, os olhos de Capitu eram de ressaca, pois traziam, diz ele, “uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”.

Bentinho admitiu humildemente que Capitu era mais mulher do que ele homem. A inteligência e independência de Capitu, originária de uma família sem expressão social, a colocavam, apesar de tudo, em plano superior, gerando insegurança no rico proprietário de terras e imóveis urbanos e bem-sucedido advogado Bento Santiago, o tendencioso e inconfiável narrador do romance escrito para provar a traição de sua companheira. Ainda hoje as opiniões se dividem: Capitu realmente traiu ou Bentinho era um ciumento patológico que não sabia lidar com uma mulher insubmissa e resiliente?

Machado escreveu durante muito tempo para o “Jornal das Famílias” e “A Estação”, duas revistas voltadas para o público feminino. Nelas publicou grande parte de sua obra ficcional e tentou orientar o gosto literário de suas leitoras. Essas circunstâncias contribuíram para que Machado elegesse as mulheres – sua formação cultural e inserção social – como tema favorito e recorrente.

A crítica norte-americana Helen Caldwell assinala “que as mulheres de Machado de Assis são, com frequência, melhor retratadas e constituem, em sua obra, personagens maiores que os homens”. O crítico inglês John Gledson constata: “As mulheres, suas vidas, seus amores e frustrações são um dos temas que preocuparam Machado por toda sua carreira”. Destaca Caldwell que Machado criava personagens que através de suas qualidades e defeitos “escreviam” as próprias narrativas. Daí o elevado paradigma literário alcançado por suas narrativas centralizadas em personagens femininas.

Essas personagens são densas, complexas, às vezes enigmáticas. E criam quase sempre “uma pesada atmosfera de volúpia”, nas palavras da crítica e biógrafa Lúcia Miguel Pereira. Algumas delas são infiéis, por frustração conjugal ou espírito de aventura. É o caso, exemplificativamente, de Virgília de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e das surpreendentes personagens dos contos “Singular ocorrência” e “Um capitão de voluntários” (este mereceu em 2015 uma ótima edição francesa). Por meio da obra ficcional e de crônicas, Machado foi precursor do moderno feminismo em nosso país. 

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