Paris (AE) – Os climatologistas parecem ter encontrado o tom certo dos alertas para conquistar o apoio da opinião pública e da classe política. Reunidos às centenas em Paris, na França, entre 29 janeiro e 2 de fevereiro, cientistas partilharam um acordo tácito que permearia todas as declarações à imprensa internacional. Nos corredores da Unesco, onde o se desenrolou o Painel Intergovernamental de Alterações Climáticas (IPCC), não foram ouvidos discursos radicais, críticas aos Estados Unidos ou à administração de George W. Bush, o presidente que se recusou a assinar o Protocolo de Kyoto. A opção foi por uma postura técnica. Afinal, as estatísticas sobre aquecimento global, sobre a concentração de dióxido de carbono na atmosfera e a elevação do nível dos oceanos causada pelo degelo das calotas polares falam por si – e são enfáticas. A expectativa é de que a mobilização da opinião pública, alertada pelas evidências científicas colhidas nos últimos 20 anos, convença a classe política quanto à necessidade de reorganizar o modelo de desenvolvimento econômico em torno de energias limpas e renováveis. Um dos convictos dessa visão é o francês Hervé Le Treut, diretor do Laboratório de Meteorologia Dinâmica do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS). Membro da Academia Francesa de Ciências e um dos co-autores do Resumo para os Formuladores de Políticas do painel, Le Treut é um dos climatologistas mais respeitados da Europa – talvez por seu discurso moderado e conciliador. Quarta e sexta-feira, em meio aos debates científicos de Paris, concedeu a seguinte entrevista ao Grupo Estado.
Quais são os avanços do relatório divulgado em Paris em comparação com os alertas conhecidos?
Hervé Le Treut : O essencial é a confirmação das pesquisas que vinham sendo feitas nos últimos 15 anos. O relatório apresentado em Paris comprova todas as evoluções que havíamos previsto em 2001 e que tinham por base modelos muito menos complexos para observação das alterações climáticas que se desenvolvem em todo o planeta. A confiança no meio científico hoje é superior à que tínhamos desde o primeiro encontro, em 1990. Mesmo assim, o que se verifica 20 anos depois dos primeiros diagnósticos é a confirmação das primeiras pesquisas. Essa enorme estabilidade nos permite ver com mais clareza os dados que chegam a cada cinco anos. Para a comunidade científica, é o mais importante. Não apenas resistimos às contestações como confirmamos nossas primeiras constatações e chegamos a um consenso. A comunidade científica está bastante mais apta a pôr à disposição dos políticos estatísticas e informações consensuais. Isso é muito importante. Se não dispuséssemos dessa base comum, obtida a partir de procedimentos transparentes, legítimos, seria muito difícil defender a tomada de medidas políticas capazes de controlar as modificações climáticas. Estamos preparados para um processo social muito maior, oferecendo um texto sólido à opinião pública.
No que o relatório peca?
HT : O relatório científico é muito consistente, mas ainda não permite prever exatamente os efeitos que o aquecimento global causará porque os sistemas climáticos não são de todo previsíveis. As previsões são também testemunhas de incertezas, embora estejam apontando para realidades que se concretizam rapidamente.
Os debates foram livres de pressões políticas? R – Foram muito factuais e se deram em torno da tentativa de nos expressarmos o mais claramente possível. Buscamos a melhor maneira de apresentar os dados e de esclarecer as questões de interesse da opinião pública. O conjunto do debate foi feito de maneira muito técnica, muito pensada. Logo, de uma forma consensual. Cada relatório agrega dados que tornam as conclusões mais e mais consistentes sobre o conjunto da evolução do aquecimento global. A responsabilidade do homem está claramente estabelecida.
Em que efeitos práticos à variação de 3ºC na temperatura global média implicará até 2100?
HT : Significará um conjunto de perturbações climáticas muito amplo. Os 3°C de aquecimento médio que constatamos representam a metade do que caracterizou o aquecimento entre a Idade Glacial e nosso atual ambiente. Ou seja, é algo brutalmente importante, que se manifesta na circulação atmosférica, na precipitação, que será diferente. Nossas indicações recentes vão nesse sentido, e também apontam a progressiva elevação do nível dos oceanos, o degelo no Ártico. Tudo o que se observa hoje está coerente com as previsões que vinham sendo feitas. Compare o aumento de 3°C no ambiente com o que ocorre quando o organismo humano tem uma febre igual. A variação de 37°C para 40°C provoca reações intensas no corpo humano. Os efeitos são muito similares para a Terra. Da disfunção do planeta resulta uma patologia. Três graus significam um nível de desregulação ambiental único.
Isso não é reversível?
HT – Um certo nível de aquecimento é irreversível. Mesmo em caso de estabilização ou diminuição da emissão de CO2 e dos demais gases, ainda enfrentaremos o aquecimento da ordem de 0,5°C. É muito importante. O retorno dos oceanos ao nível normal, por exemplo, demandaria um tempo ainda desconhecido, já que a inércia desse ambiente é maior. Mas é importante destacar: a redução da emissão abriria a perspectiva de um futuro bem melhor.
O Protocolo de Kyoto e o mercado de carbono são suficientes?
HT : Não sei se são eficazes, mas são os únicos possíveis. Logo, nos cabe fazê-los funcionar. Nossa preocupação é fazer com que o mercado de carbono, que entrará em vigor na Europa em 2008, seja bem-sucedido. É a hora de incluir a comunidade internacional nessa problemática. O Protocolo de Kyoto não é completo, não é maravilhoso, não foi assinado por todo mundo, mas é o caminho que temos. Se não pusermos em funcionamento os instrumentos políticos que organizamos, não sei o que pode acontecer. Devemos confiar na indústria, nas iniciativas não-coordenadas, mas temos ao mesmo tempo de estipular diretrizes para reduzir os efeitos do aquecimento global.
O senhor acredita no funcionamento do mercado de carbono sem os Estados Unidos? O que virá após Kyoto, que os próprios cientistas consideram limitado?
HT : Não posso afirmar se o mercado de carbono funcionará, por ser um tema afeito aos economistas. É uma questão técnica bastante ampla, sobre a qual nós, climatologistas, não temos total controle. Já o Protocolo de Kyoto acaba em 2012. Precisamos começar a negociar desde já o que vem depois. De qualquer forma, é importante reforçar o acordo para conquistar algo melhor após, com o engajamento dos países em desenvolvimento como a China, a Índia e o Brasil.
Mas o desafio maior não será convencer os Estados Unidos? R – Não sei como convencer os Estados Unidos. Sei apenas que dentro de dois anos haverá eleições presidenciais na América. Creio que há uma questão política que pode ser resolvida em pouco tempo. Mas não quero aprofundar minhas opiniões. Não é o meu país.
Qual deve ser o engajamento dos países em desenvolvimento?
HT : Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que não é admissível atribuir aos países em desenvolvimento o passivo do que ocorreu nos séculos passados. Mas o mínimo que podemos exigir é a tomada de consciência. O modelo de desenvolvimento que eles adotarão é absolutamente chave para o futuro. China, Índia, talvez o Brasil, serão países dominantes em 30 anos. Suas escolhas terão uma incidência enorme sobre o planeta. Entre as escolhas estão as formas de transporte e energia, por exemplo. É fundamental auxiliar esses países na adoção de geração de energia alternativa.
E qual deve ser o papel do Brasil? No que podemos avançar?
HT : Evito comentar a situação de outros países. O problema ambiental passa, como falei, pela tomada de consciência de todos sobre suas responsabilidades, no campo econômico em especial. O Brasil será um dos atores centrais do desenvolvimento neste século. Posso falar com mais tranqüilidade sobre a comunidade científica do Brasil. Trata-se de um país muito ativo. Meus colegas climatologistas brasileiros são muito eficientes.
E quanto à ONU, ao Banco Mundial e às demais instituições internacionais?
HT : Estamos diante de um problema global. Não podemos imaginar tratá-lo em nível nacional, mas cada vez mais em amplitude mundial. O aquecimento global é muito diferente de outros problemas ambientais, como a poluição, que tem caráter regional. É preciso tratá-lo nas estâncias adequadas.
Quais serão os desafios políticos do acordo pós-Kyoto?
HT : Posso responder mais como cidadão do que como cientista. Há inúmeras frentes em que podemos atuar com vistas a controlar a emissão de gases que resultam nas alterações climáticas. Um exemplo são as políticas de desenvolvimento urbano. É preciso saber como construir, como transportar grandes populações nas cidades, como desenvolver e explorar energias alternativas. São políticas de médio e longo termo que exigem a tomada de consciência desde agora. Quando construímos uma cidade, construímos pensando em 100 anos. Se essa cidade é voltada, por exemplo, para o transporte individual e não para o coletivo, estamos fazendo uma escolha pelo uso do petróleo como fonte de energia. Construímos hoje os problemas e as soluções que teremos em 50 anos.
O senhor acredita que a causa ambientalista é mais aceita pela classe política?
HT : Os efeitos da transformação climática estão se tornando mais visíveis. A temperatura vai continuar a subir, os efeitos serão mais e mais visíveis. A abertura política acompanhará, necessariamente, a constatação prática do que estamos alertando. Veremos no futuro a medida dessa adesão. Estou certo é que a questão ambiental precisa se tornar central na tomada de decisões. O pensamento político tradicional já não responde mais ao que precisamos. Precisamos o mais rapidamente possível limitar, acabar com os mecanismos que geram as alterações climáticas. A partir do momento em que começamos a verificar os acontecimentos, tendemos a buscar o consenso.
Em caso de fracasso de um grande acordo, viveremos o caos climático?
HT : Não creio em uma solução, mas em uma série de contratos que devemos estabelecer visando refrear as raízes das mudanças climáticas. Já estamos em um mundo injusto demais no que diz respeito ao acesso à água, ao acesso ao alimento, à agricultura. Os contratos são meios de resolvermos, ou não, não apenas a questão ambiental, mas também os fracassos do presente. O mundo já é perigoso. E está se tornando mais.