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Uma cidade que nasceu de novo e hoje está esquecida

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MUNICÍPIOS -  Da velha cidade de São Rafael não resta quase nada

A história da cidade que nasceu de novo. O conto de um povo, cujas lágrimas, largadas sobre sua terra, misturaram-se às águas do rio grande represado. É a história de São Rafael, município de gente pacata do Vale do Açu, que tomado pela barragem Armando Ribeiro Gonçalves, foi reconstruído mais acima, reabrigando sua simples população.

Faz 24 anos que aquelas famílias deixaram suas casas para trás, à mercê das águas do Açu-Piranhas, e se mudaram para a nova cidade, a segunda planejada do Brasil. A classificação era honrosa – a primeira foi Brasília – e as promessas eram de que na nova sede a vida seria bem melhor. Mas era duro largar tudo, casas, ruas e histórias, atrás de um sonho que parecia conversa de doutor engenheiro.

Contudo a mudança estava determinada pelo Governo Federal e todo mundo foi para a nova São Rafael, construída a quatro quilômetros da primeira. Totalmente saneada, a cidade projetada tinha casa para todos, ruas asfaltadas, além de unidade de saúde, escolas e até uma nova igreja matriz. Tudo prontinho, novinho em folha. Na época, no início da década de 80, a medida foi considerada um avanço para os padrões nacionais.

Com o tempo, a cidade mudou. A economia, que na antiga tinha a força da agricultura mantida na vazante do rio, hoje tem base na pesca na barragem. Mas como município pequeno – hoje com pouco mais de 8 mil habitantes – o sustento vem das verbas de Brasília. E com isso, toda a infra-estrutura já não é mais a mesma, está desgastada.

Não houve reparos nos anos que se passaram. A impressão que se tem é que tudo continua exatamente da forma como foi entregue. Não acompanharam o crescimento da cidade. Fortes mesmo e inteiros ainda hoje, somente o povo, e a torre da antiga igreja, que incrivelmente permanece de pé e visível, sobre a lâmina d’água da grande barragem.

Missionário deu nome à cidade

Tudo começou a partir do aldeamento indígena chamado Caiçara, nas proximidades do Rio Piranhas, e pela localização, o desenvolvimento da agricultura e da pecuária era natural. E em 1765, as terras já pertenciam ao Capitão João Francisco da Costa. O nome de São Rafael foi dado à comunidade por um missionário capuchinho, por volta de 1845 e a partir daí, vieram a primeira escola e o cemitério.

Com o aumento da população e uma estrutura considerável, em 1938 a localidade passou a ser distrito de Santana do Matos, tornando-se município de São Rafael, finalmente, em 23 de dezembro de 1948. Cerca de 30 anos depois, uma iniciativa do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) mudaria para sempre a história da cidade. A construção da barragem Engº. Armando Ribeiro Gonçalves teve início em 1979.

A notícia logo chegou ao município: as águas do reservatório iriam cobrir toda a São Rafael e as 730 famílias seriam relocadas em uma nova sede, a ser construída a quatro quilômetros da primeira. Dividida em quadras, totalmente asfaltada e 100% saneada, a nova cidade ganhou também uma igreja matriz.

“…a hora derradeira, o momento da despedida, os carros fazendo manobras, as pessoas se atropelando e se acotovelando em cima dos caminhões, umas carregando suas mobílias enquanto outras retiravam as imagens dos Santos da igrejá…”

O trecho do livro “São Rafael – Suas Histórias e Suas Famílias” – 2002, de Willame de Araújo descreve o dia da procissão, que levou as imagens dos santos e as últimas famílias.

Perfil da cidade de São Rafael

Com a construção da barragem Armando Ribeiro Gonçalves a antiga cidade foi coberta pelas águas e uma nova área abrigou os moradores

Emancipação: 23/12/48

Área: 469,096km2

População: 8.466 hab (est. 2006)

Densidade: 18,0 hab/km2

Distritos Rurais: 21

Mesorregião: Oeste

Microrregião: Vale do Açu

Limites:  Ao Norte, com Assu e Itajá; ao Sul, com Jucurutu; ao Leste com Santana do Matos; ao Oeste com Paraú e Açu.

Clima: Semi-Árido, temperatura média anual de 30°C

Relevo: acidentado e ondulado, serras e serrotes, com destaque para as serras de Lájea Formosa e Branca a Leste, João do Vale a Oeste e Pindoba ao Sul

Vegetação: destaque para a caatigueira (xique-xique, faxeiro, mandacaru, palma e macambira), além de jurema-preta, mufumbo, pereiro, marmeleiro, pinhão, oiticia, umbuzeiro e algaroba

Fauna: evidência para raposa, guainim, cobra, rouxinol, galinha d’água, tamanduá, jaçanã, galo-de-campina

Economia: Predominantemente baseada na pesca, além de agricultura e pecuária em pequena porção.

Economia da cidade passou da agricultura para a pesca

“Me lembro que o jipe do meu pai, estava todo enfeitado, levando um dos santos. Foi lindo”, lembra Tânia Maria de Souza, que tinha 10 anos na época. A menina Tânia cresceu com a nova cidade, e hoje, gerente de administração interna da prefeitura, valoriza os dias atuais. “Aqui nós temos infra-estrutura. A antiga não tinha quase nada, a água tinha que ser pega no lombo dos animais, as ruas não eram calçadas”, explica.

Segundo Tânia, a economia da cidade mudou bastante. A agricultura se enfraqueceu e em seu lugar veio a pesca. Ela conta que a estrutura continua boa na saúde, já que São Rafael tem um hospital municipal, e na educação, com uma rede de cinco escolas municipais e uma creche. “Aqui não faltam vagas para as crianças. Pelo contrário, temos que convencer os pais a levarem os alunos”.

A situação da segurança é tranquila. A cidade não tem agências bancárias e o povo é bastante pacato. Mas uma desgraça já começa a atormentar as autoridades locais: a chegada do crack. “Queremos tratar desse problema antes que a situação fique mais grave”, disse o vereador Chico Brilhante.

Chico já veio para a nova cidade adulto, e também defende a mudança, diante da estrutura encontrada. “Acho que pouca gente desaprova. Claro que a economia mudou, mas o bem-estar social é outro”, disse. Mesmo assim, reconhecem, morre de saudades de seu local de origem. “Fico me lembrando dos banhos no rio… era bom demais. A gente sente, né? Não dá para dizer que não”.

Antônio Bezerra tinha sete anos quando sua família  teve que abandonar a granja, nos arredores da cidade. A propriedade também seria tomada pela água e uma outra foi dada ao pai dele. Hoje, encarregado de uma beneficiadora de granito, Antônio conta os prejuízos. “Pra gente não foi bom não. Lá meu pai plantava tudo. A granja que deram é muito menor”.

Déficit  em saneamento gira em torno de 30%

Após 24 anos da mudança para a nova sede, a economia de São Rafael passa por grandes dificuldades, girando em torno do dinheiro de aposentados e funcionários públicos. A receita própria do município é irrisória, correspondendo a cerca de 3% do total. Praticamente todo o resto dos recursos é proveniente do Fundo de Participação dos Municípios.

Com o alagamento da cidade original pela Engº. Armando Ribeiro Gonçalves, os agricultores desapareceram, já que a atividade se desenvolvia às margens do rio Piranhas-Açu. A pecuária também ficou bastante reduzida nas novas terras e a extração de rochas e minérios foi deixada no fundo da nova barragem. Hoje em dia, na nova São Rafael, o comércio é tímido, quase inexistente.

De acordo com o vice-prefeito, Cícero Pinheiro Tavares, a população não paga o IPTU, e não há grandes empresas que gerem receita de ISS. “A maior empresa aqui é uma que beneficia granito. E os royalties da Petrobrás dão no máximo R$ 2 mil por mês”, contou. Cícero revelou que a cidade precisa se manter com um orçamento de  cerca de R$ 500 mil por mês, num total de R$ 6 milhões por ano.

A situaçãofica pior porque grande parte do orçamento é gasta com o pagamento de dívidas como precatórios, contas da Caern e Cosern e INSS. “Daí fica muito difícil trabalhar com poucos recursos”, lamentou o vice-prefeito. Segundo Cícero, ele e o prefeito estão vindo constantemente a Natal, cobrar ajuda dos deputados estaduais e da governadora. “O prefeito foi esta semana, tentar uma audiência com a governadora, para pedir que ela termine as casas que começou e não terminou”.

Se na época de sua fundação São Rafael era toda saneada, passadas duas décadas a situação de excelência não foi mantida. “Sendo muito otimista, nosso déficit em saneamento gira em torno de 30%, disse o vice-prefeito.

Entrevista: Jorge Marinheiro, agricultor

“Pra mim tudo aqui está nos conformes”

O agricultor já tinha quase cinqüenta anos quando recebeu a triste notícia. Era muito apego para Jorge Marinheiro, casado com dona Margarida, pai de oito filhos, nascido, batizado, criado e casado na antiga São Rafael. Custou para que ele saísse, não queria de jeito nenhum largar sua casa, construída com suor e esmero – imóvel confortável para a numerosa família.

Seu Jorge não teve suas plantações alagadas, mas o roçado ficou além da barragem, distante e mais cara. Para ele, a mudança foi para uma casa menor e a relocação para o povo acabou sendo prejudicial, já que as atividades antes desenvolvidas foram enfraquecidas. Hoje ele, com 70 anos,  vive bem, acompanhado da dedicada esposa e alguns filhos, de frente à nova igreja. Mas ao lembrar do tempo antigo, tem o brilho do marejado nos olhos. Suas lembranças ficaram lá, sob as águas da barragem.

TRIBUNA DO NORTE – O senhor tinha uma casa melhor na antiga cidade. Em compensação, essa cidade é mais estruturada. A mudança foi positiva para o senhor?
Pra mim aqui está nos conformes. Mas teve uma coisa difícil pra nossa região. Porque nós tínhamos garimpo de xelita, de granito, de mármore, mas a barragem cobriu. E a vazante do rio era direto, tinha milho, feijão, batata… Na cidade velha você via sair três caminhões de feijão. Hoje você não vê um litro. Hoje tem a pesca, mas pra quem sabe pescar, né?

E o sentimento do pessoal em geral, qual é?
JM – Esse pessoal se liquidou. Porque não sabe e não tem como viver hoje. As terras de planta deles o rio cobriu. Aqui em cima também planta, mas a água é cara pra irrigar.

O senhor sente saudades daquela terra?
Eu tive e ainda tenho, né? Porque a gente tinha uma cidade que funcionava, tinha renda. Hoje nós temos uma cidade que não tem renda. Tem muito peixe, mas quem vem de fora e compra não paga imposto. A cidade hoje é sofrida. Lá você encontrava um boi gordo, plantação, e todo mundo tinha um jeito de arranjar sua feira.

Foi doído deixar sua casa, seu Jorge?
Foi difícil, foi difícil… Na procissão que teve fui eu que levei Nossa Senhora da Conceição, nossa padroeira. Eu chorei foi muito.

E a reação das famílias quando souberam que teriam que sair?
Era um chororô maior do mundo. Tinha um tio meu que era cego, que ele dizia: “Eu só saio daqui depois que a água me cobrir e eu morrer afogado. Mas não largo minha propriedade!” Teve gente mais velha na  época que até morreu de desgosto.

E como é que foi essa procissão? Dizem que foi muito bonito.
Eu já fui um dos últimos a deixar a casa.  Eu fui batizado naquela igreja de lá, fui casado na igreja de lá, batizei meus filhos lá… Sair era uma coisa que arrastava tudo, né? Aí no dia era uma multidão de gente. Era gente cantando, os carros de som, e o padre rezando, celebrando. Foi muito sofrimento naquele dia, mas aí o tempo se encarrega de curar.

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