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Uma história de glória e abandono

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Marina Guimarães – Agência Estado

Buenos Aires  – Dois de abril é a data que marca o início da Guerra das Malvinas, que durou 74 dias e continua mexendo até hoje com a memória e os sentimentos dos argentinos, ingleses e kelpers – como são chamados os moradores das ilhas Malvinas/Falkland. A data tem sido marcada por uma enorme carga política, emotiva e dramática para a Argentina, sobretudo para os ex-combatentes, que viveram na marginalidade durante anos a fio.

“A sociedade custou muito para entender nossa situação: saímos daqui com 18 anos e voltamos com um peso psicológico gigantesco. Houve mais mortes por suicídios do que pela guerra”, afirmou o jornalista Edgardo Esteban, ex-combatente e autor do livro “Iluminados pelo Fogo”, primeiro relato em primeira pessoa de alguém que esteve na linha de combate nas Malvinas. Em discurso recente, a presidente Cristina Kirchner também recordou o estrago psicológico da guerra sobre os soldados: “Tivemos 274 argentinos mortos no confronto e mais de 400 suicídios”, relembrou. Do lado inglês, foram 255 mortos e um número de suicídios que o governo britânico nunca esclareceu.

O livro de Esteban, lançado em 1993 e atualmente em segunda edição, só ganhou a atenção do público em 2005, quando sua história foi adaptada para o cinema, em filme homônimo dirigido pelo cineasta Tristán Bauer, atual presidente da TV Pública argentina. O filme, diz o escritor, marcou um antes e um depois no olhar da sociedade sobre a situação dos ex-pracinhas das Malvinas. “Sem dúvida, abriu um debate escondido porque sempre falavam em heróis, nunca sobre a realidade”, disse Esteban.

“Quando deixaram a Argentina, se despediram como jogadores de futebol que vão competir em uma Copa do Mundo, com glória e felicidade. Depois de 74 dias de conflito, voltaram ao país em ônibus com os vidros cobertos, em absoluta solidão”, relatou Bauer. “Até fizeram os ex-soldados assinar um documento pelo qual se comprometeram a não abrir a boca sobre suas experiências”, comentou. Bauer e Esteban são algumas das muitas testemunhas da “solidão e das costas frias que toda a sociedade argentina deu aos jovens soldados, em plena idade para o amor, submetidos ao rigor de ter de enfrentar os melhores exércitos equipados do planeta, como é o exército britânico”, critica o diretor.

A dignidade da maioria dos ex-combatentes começou a ser recuperada somente nos últimos anos, após livros, filmes e mobilizações que abriram o debate sobre a herança da guerra e levaram à adoção de políticas governamentais para os ex-soldados Hoje, eles recebem diferentes pensões que somam um total de cerca de US$ 2 mil e têm atendimento médico e psicológico de graça. Nem todos, porém, foram beneficiados pela assistência do Estado.

Cerca de 35 mil argentinos que prestavam serviço militar naquela época e foram mobilizados para o sul do país reclamam até hoje o reconhecimento do Estado. Eles não chegaram a ir para a linha de combate e nem passaram perto dos tiros e bombas, mas defendem que merecem ser reconhecidos. “O melhor que eles têm a fazer é voltar ao trabalho e não ficar vivendo do passado”, afirma Esteban, que não pensa em voltar jamais ao campo de batalha. “Não creio na guerra e nunca fui a um ato militar. Jamais voltaria à guerra”, disse ele.

O governo argentino tampouco tem intenção de empreender uma nova cruzada bélica contra o exército britânico. Depois da euforia pela breve recuperação das ilhas, em 1982, e do silêncio absoluto que se seguiu à derrota para os ingleses, o tema Malvinas ficou praticamente proibido no país durante décadas. O assunto só foi retomado com vigor durante o governo Kirchner, a partir de 2003, quando a bandeira da soberania começou a ser defendida com veemência. O caminho da defesa, no entanto, é percorrido em nome da paz.

“Um novo período se abre na América Latina, que está unida nessa luta importante para reivindicação de nossos direitos soberanos no arquipélago e também pela paz, reclamando diálogo, diálogo e diálogo, longe de qualquer aventura bélica”, defende Bauer, referindo-se à recente decisão do Mercosul de proibir que embarcações com bandeira das Malvinas atraquem em portos dos países do bloco. O cineasta, que dirige três canais de televisão estatais, ressaltou a mudança radical dos países da região no apoio aberto à questão das Malvinas. “Houve uma real compreensão dos países vizinhos sobre o risco da presença militar britânica para o povo latino-americano porque existe uma base militar potente da Grã-Bretanha instalada no Atlântico Sul, na nossa região”, argumenta.

Do ponto de vista britânico a história é outra

Londres (AE) –  A visão do Reino Unido contrasta fortemente com a posição da Argentina e de outros países da América Latina sobre todos os conflitos que cercam os territórios. Enquanto a Argentina reclama da militarização na região, o governo britânico alega que seu único objetivo é defender os cidadãos que habitam as ilhas. Guia-se, assim, pelo princípio da autodeterminação, já que a população local quer continuar sob o comando do Reino Unido. Recusa-se categoricamente a negociar a soberania dos territórios, pela qual alega ter direito desde 1765, antes da independência argentina.

Para dar subsídios aos seus argumentos, o ministério das Relações Exteriores até distribuiu um folheto na tentativa de mostrar que a paz, a estabilidade e o bem-estar imperam no arquipélago, onde os moradores falam inglês e possuem status completo de cidadãos britânicos. 

O argumento é que, em 2008, as Malvinas aprovaram uma Constituição que inclui o direito de decidir sobre o próprio futuro. O papel britânico seria fornecer segurança e defesa para as ilhas. Isso entra em contradição com a postura adotada em relação à Escócia, que pretende realizar um plebiscito para consultar a população sobre o desejo de independência do Reino Unido, o que não interessa ao governo do primeiro-ministro David Cameron.

Bate-papo

Virginia Gamba, Especialista em defesa

“Base militar nas Malvinas configura ato anacrônico”

Buenos Aires (AE) – Para a especialista argentina em defesa Virginia Gamba, a decisão de ir à guerra pode ser explicada pelo contexto e momento que os dois países viviam em 1982. Junto com o historiador inglês Lawrence Feedman, ela é autora do livro “Sinais e guerra”, editado somente em inglês e espanhol e considerado um dos clássicos sobre essa parte da história bélica contemporânea. Gamba, com um extenso currículo acadêmico internacional, no qual se destaca a cátedra de Estudos de Segurança Latino-americana do King’s College London, disse à Agência Estado que base militar inglesa nas Malvinas é um anacronismo que não se encaixa no presente regional do Mercosul e alertou para os riscos aos recursos naturais e à geopolítica regional.

Trinta anos depois, a senhora acha que a guerra poderia ter sido evitada?

Naquele contexto e momento, com as características dos governos que prevaleciam no Cone Sul naquela época, com a informação que havia e com as ações britânicas hostis na Geórgia do Sul, a decisão tomada se explica. Sempre se pode evitar tomar uma decisão, mas o “não fazer nada” também tem um custo ao longo do tempo. É difícil saber quanto a posição argentina teria se prejudicado nesta disputa com o passar do tempo “se não tivesse feito nada”. Houve muitas oportunidades de saída pacífica, mas todas elas foram rejeitadas pela Grã Bretanha antes e durante a guerra do Atlântico Sul.

O governo britânico argumenta que não negocia a soberania das ilhas porque defende a autodeterminação dos kelpers. A senhora acha que essa é mesmo a razão do interesse do Reino Unido pelas Malvinas?

O residente das ilhas vive do negócio da presença militar da Grã-Bretanha, já que serve à dimensão sociocultural de um grupo rotativo de pessoas que duplica o número de residentes (nas ilhas). Amparado pelo apoio da União Europeia com seus programas de assistência e o negócio de prover necessidades da população militar rotacional, têm prosperado comércios herdeiros da famosa Falkland Island Company, que se diversificou com empresas de exploração petrolífera, turismo, transporte e aluguel de casas e veículos para o contingente militar. Portanto, a militarização das ilhas Malvinas também tem uma vertente econômica importante.

Quais são os impactos deste interminável pós-guerra para os países envolvidos e, especialmente para a região do Mercosul?

O problema fundamental está no Mercosul. Hoje, para enfrentar novas ameaças à paz, à segurança e à estabilidade mundial – em todos seus aspectos e dimensões – a tendência é regionalizar as soluções de forma cooperativa com os países que ocupam um mesmo espaço, uma mesma problemática e uma região geográfica. Em todas as regiões do mundo, estamos vendo o fortalecimento de organismos e mecanismos subrregionais e regionais de segurança cooperativa. O problema com a contínua presença de um país extrarregional em um espaço geográfico disputado, como é o caso do primeiro grupo das ilhas, as Malvinas, tão perto do continente americano, é que não permite o fortalecimento de organismos regionais de segurança cooperativa. Além disso, a presença militar britânica nos outros grupos de ilhas também é um fator de desestabilização, uma vez que, implicitamente, sua presença militar rompe o espírito e o que diz o Tratado Antártico assinado pelos países do Mercosul.

A militarização promovida pelo Reino Unido, como denuncia o governo argentino, representa algum risco para o Atlântico Sul e os países da região?

Não deveria haver presença militar externa alguma em nosso mar hemisférico, salvo aquela que seja cooperativa e transparente entre países que decidem patrulhar e monitorar juntos, cumprindo com políticas regionais para dissuadir condutas ilegais e depredadoras em um contexto internacional. A base militar inglesa nas Malvinas é um anacronismo que não se encaixa no presente regional do Mercosul. Além disso, a base militar britânica nas Malvinas não tem uma finalidade somente militar. Está colocada ali por razões fundamentais: sustentar a economia local de seus residentes, a maioria dos quais não é nem nascida nem educada nas ilhas – trata-se de uma população implantada a partir de 1983 e que supera em muito os habitantes originais – e para servir de infraestrutura aos países da União Europeia com o escudo do Tratado de Lisboa de 2007, aplicável às Ilhas Malvinas.

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