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Uma História para dizer Adeus II

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PERSEVERANÇA - Pedrito realiza shows ao ar livreDe carona com o tio, que fazia e vendia sandálias no bairro humilde do Viana, uma assustada criança chegava à noite em Luanda. A cidade era muito escura. O brilho dos olhos acesos outrora com as histórias do tio, agora estava apagado. Faltava constantemente energia na capital angolana, assim como falta até hoje. Ansioso, Pedrito perguntou ao tio onde estavam todos os carros e os grandes prédios. O tio nada falou. Talvez a resposta fosse aquela mesma, Pedrito. Afinal, numa cidade grande, nem todos conseguem enxergar a luz do amanhã diante da escuridão do dia-a-dia.

Para ajudar na alimentação das sete pessoas que moravam na minúscula casa do tio, Pedrito rondava as ruas. O trabalho começava nos lixos da cidade com a procura por borrachas, material usado para a fabricação das sandálias. Enquanto caminhava, ele lembrava da sua viola abandonada no Bié. Mas para jogar a tristeza fora, Pedrito cantava algumas canções. Canções compostas pela sua imaginação. Canções que ainda iriam ganhar formas, colorindo assim um jardim chamado futuro.

A produção de sandálias exigia muito de Pedrito. Em média, eram oito horas de trabalho por dia. Certa vez, pela janela de casa, ele viu alguns garotos jogando futebol. Naquele momento, decidiu deixar as sandálias de lado e, com os pés descalços, correu pelo barro avermelhado do campo improvisado. Era 2002. O Brasil havia acabado de ganhar a Copa do Mundo.

Pedrito sorria, corria, suava e vibrava. Vibrava até ver a sua tia, parada na porta de casa. Ela parecia brava. E estava. Desabafou. Falou que passava o dia inteiro trabalhando para colocar comida na mesa, enquanto ele só queria saber de jogar futebol. Agora, cada um que morasse naquela casa teria que se virar para comer. Era o fim do início de uma brincadeira de criança. Era a continuação da dura realidade de um pequeno adulto. Nesta noite, somente as estrelas de um céu sem cor puderam ver as lágrimas de diamante na face negra de Pedrito.

No dia seguinte, como de costume, Pedrito acordou cedo e saiu em busca de mais borrachas para continuar a dar vida às sandálias. Depois de uma manhã inteira andando pelas ruas e pelos lixos, ainda com poucas borrachas dentro do saco de plástico, ele decidiu procurar a casa de um outro tio para almoçar. Ao chegar lá, o menino faminto encontrou mais do que um prato cheio de comida. Encontrou o seu anjo da guarda. O anjo da guarda que voltaria a alimentar os seus sonoros sonhos.

Lopes não tinha nada a ver com os anjos vistos por Pedrito, no pequeno altar da distante igreja do Bié. Enquanto aqueles anjos de concreto tocavam harpas e voavam, Lopes adorava um solo quando dava voz à viola. Graças ao instrumento musical sagrado, Pedrito voltou a ter fé na música. Voltou a acreditar mais nos seus compassos do que nos passos em falso da sua rotina. A partir daquele instante, a vida do franzino garoto ganhou um novo ritmo.

Enquanto Pedrito cantava e tocava músicas de sua própria autoria na viola, Lopes pacientemente traduzia as letras do kibumdu para o português. Ele anotava tudo num caderno escolar com a capa do Super-Homem. Se quisesse vencer todos os monstros da cidade grande para conquistar as rádios, Pedrito teria que aprender a língua mais falada pelos angolanos. Teria que deixar de lado o kibumdu, dialeto do Bié.

Longe da sua província natal, sempre após jantar na casa de Lopes, Pedrito era o centro das atenções dos vizinhos. O seu despretensioso show começava quando todos estavam não-confortavelmente sentados na calçada. Silenciosamente, a pequena platéia esquecia as dolorosas dificuldades de um país recém-saído da guerra, marcado pelo vergonhoso e insensato número de vítimas nos conflitos militares e civis. Mais de um milhão de mortes.

Agora, todos ali queriam apenas um pouco de paz, ao fim de mais um dia de trabalho. E a paz voava para o horizonte com a voz daquela criança, que ainda se esforçava para falar o português corretamente. E, acima de tudo, esforçava-se para equilibrar a viola desproporcional à sua perna direita.

De tanto os vizinhos elogiarem as canções, Pedrito e Lopes decidiram se aventurar pelo centro da capital angolana. O destino escolhido tinha sido uma rádio bastante popular. Era a rádio mais ouvida onde eles moravam. Chegaram até a entrar lá, mas pararam logo na portaria. Para gravar no estúdio, o porteiro disse que eles precisariam de uma fita cassete com algumas canções próprias.

Os dois não se abalaram. Na volta pra casa, a fita já estava na mão de Pedrito. Porém, o que era pra ser uma improvisada gravação acústica, dentro de um dos quartos da casa de Lopes, transformou-se praticamente num show de heavy metal. Homens, mulheres e crianças gritavam sem parar, depois que descobriram que poderiam gravar e ouvir, posteriormente, as suas próprias vozes no aparelho de som.

No outro dia, Pedrito e Lopes retornaram à rádio. Desta vez, já com a fita gravada. A dupla tinha certeza de que agora poderia, no mínimo, gravar uma música no estúdio. Estavam enganados. Tinha sido muito barulho por nada. Ao ouvir toda aquela gritaria registrada na fita, o diretor da rádio nem contou conversa. Dispensou imediatamente os sonhadores músicos. Por fim, com pena talvez, disse que voltaria a falar com eles por telefone. Nunca ligou. Mas um sonho não se apaga assim, quando ainda existe brilho nos olhos.

Era uma segunda-feira da primavera de 2003, quando Pedrito pediu a viola emprestada a Lopes. Estava determinado, mais uma vez. Sozinho, depois de ouvir todos os conselhos e as lendárias histórias dos amigos dele sobre os perigos de trabalhar na rua, o pequeno músico partiu para cantar e tocar viola nas praças de Luanda.

No primeiro dia, as pessoas paravam simplesmente para rir da cara de Pedrito. Para elas, era engraçado ouvir um garoto daquele tamanho, completamente envergonhado, cantando as músicas num português bem enrolado. Resultado no fim da tarde: 10 Kwanzas. No dia seguinte, Pedrito voltou à praça. Não tinha mais tanta vergonha. As pestanas ficaram mais firmes, a voz mais audível e a gorjeta maior. Ao chegar em casa, Lopes viu 1.600 Kwanzas em cima da mesa. O valor corresponde hoje a 20 dólares. Sem crer no que via, Lopes perguntou se Pedrito havia roubado aquele dinheiro. O assustado garoto levou ainda alguns minutos para jurar que havia tirado as notas das pessoas, sim. Mas apenas com as suas músicas. A partir dali, Lopes era companhia certa nos shows ao ar livre de Pedrito.

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