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Uma livraria, duas bibliotecas (I)

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Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

Conheci a cidade do Porto quando lá fiz uma pós-graduação na Universidade Lusíada, que tem uma de suas sedes nessa famosa cidade portuguesa. Era um curso intermediado pela Associação Nacional dos Procuradores da República/ANPR e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil/AJUFE. O ano era 2000, se não estou enganado. Tudo era muito bom na rica cidade comercial, a segunda maior de Portugal, em especial o vinho fortificado local.

E entre uma taça e outra, visitei algumas vezes aquele que é frequentemente considerado (leia-se pela rede de TV “CNN”, pelas revistas “Time” e “Travel + Leisure”, pelo jornal “The Guardian”, pelo guia de viagens “Lonely Planet” e por aí vai) um dos mais bonitos – quiçá o mais – comércios de livros do mundo: a “Livraria Lello”, que fica no número 144 da Rua das Carmelitas, no centro histórico do Porto.

Muito embora a empresa seja uma sucessora da antiga “Livraria Chardron” (fundada em 1869), adquirida pelos irmãos José e Antônio Lello (em 1894), a história da “Livraria Lello” do Porto, o estabelecimento ali especificamente dedicado ao comércio de livros, remonta a 1906, que é o ano da inauguração da inconfundível loja da Rua da Carmelitas. O projeto e a construção do edifício foram obras do engenheiro Francisco Xavier Esteves (1864-1944), profissional das ciências exatas que tinha um gosto diletante pela literatura. E ele (o edifício) é belo desde a sua fachada, em estilo neogótico, que a qualquer um impressiona.

Entretanto, é o interior da livraria que, de tão belo, mais nos “assusta”. Há os baixos-relevos em homenagem aos fundadores da livraria, irmãos José e Antônio Lello. Há bustos e mais bustos de grandes escritores portugueses, Eça de Queirós (1845-1900), Camilo Castelo Branco (1825-1890), Antero de Quental (1842-1891) e Guerra Junqueiro (1850-1923), entre eles. A madeira escura trabalhada é belíssima. Os detalhes das estantes e das paredes chamam nossa atenção. Isso sem falar nas colunas e nos corrimões também em madeira finamente burilada. O teto em gesso pintado (que imita perfeitamente madeira) e o enorme vitral com o monograma dos irmãos fundadores desse “templo” são quase insuperáveis. Digo quase porque, como afirma o próprio sítio (na Internet) da casa, eles têm “a tarefa pouco invejável de competir pelas atenções com a famosa [e dominante, no ambiente da livraria] escadaria carmim”, cuja aparência de leveza, que “encobre a audácia da sua concepção”, nos proporciona o desejo de subi-la (a escada) até o infinito.

O acervo da “Livraria Lello” – embora isso seja o “de menos” aqui – é grande e variado (leia-se muito bom), constando também uma seção protegida (no piso inferior, se não estou enganado), com os livros mais antigos da livraria, assim como os livros raros e as primeiras edições, alguns datando da época ou mesmo de antes da fundação da loja. De fato, a “Lello” é uma casa diferente, que mais parece uma biblioteca que uma livraria.

E por falar em bibliotecas, foi também nessa temporada de pós-graduação em Portugal que conheci melhor a belíssima biblioteca da Universidade de Coimbra, chamada de  “Biblioteca Joanina” em homenagem ao seu benfeitor, dom João V (1689-1750), sem dúvida o mais extravagante monarca que a casa de Bragança legou a Portugal.

A história da fundação da Universidade de Coimbra – que procurou reproduzir o exemplo e o modelo de estrutura acadêmica da Universidade de Bolonha, fundada em 1088 e considerada a primeira instituição do tipo no mundo ocidental – é muito interessante. Como andei checando no livro “La universidad: una historia ilustrada” (Edición Turner, 2010, publicado sob a direção de Fernando Tejerina), sua origem remonta a 1308, quando foi trasladado a essa comuna (Coimbra), em razão sobretudo dos tumultos causados pelos estudantes na capital, o “Estúdio Geral de Lisboa”, que havia sido fundado, pelo rei dom Dinis (1261-1325), em 1290. E de “Estúdio Geral” a universidade, foram algumas idas e vindas entre Lisboa e Coimbra, até que ela se quedasse definitivamente, em 1537, nesta última. Dominando a colina que encima a cidade, a Universidade de Coimbra ocupa, desde os anos 1530, o antigo Palácio Real de Alcáçova, hoje a sede principal da instituição.

Dentro dos muros da Universidade de Coimbra/Palácio de Alcáçova, passando pelo seu enorme portão de ferro do século XVII, dá-se com um pátio interno do século XVI, chamado de “Paço das Escolas”, que, por sua vez, proporciona acesso direto ao prédio principal do complexo, em cujo centro está a tal “Biblioteca Joanina”, que é considerada uma das mais belas bibliotecas barrocas do mundo.

Edificada entre os anos 1717 e 1728 pelo arquiteto Gaspar Ferreira, a “Biblioteca Joanina”, apontam Jean Serroy (texto) e Guillaume de Laubier (fotografias), em “The Most Beautiful Universities in the World” (Abrams Books, 2015), “é organizada em três sucessivas salas conectadas por arcos romanos [solução arquitetônica que impressiona, além de criar espaço extra para mais estantes e livros]. Os tetos mostram afrescos alegóricos pintados por Vicente Nunes e António Simões Ribeiro. Em cada uma das salas há imponentes estantes de madeira decoradas que são trabalhos de Manuel da Silva. Elas contêm inestimáveis coleções de livros datando do século XVI ao século XVIII, incluindo mais de 200 mil volumes organizados em estantes de carvalho (uma madeira conhecida por suas propriedades para repelir insetos), salvaguardados por um clima estável, assim como por uma cuidadosamente protegida colônia de morcegos, que vagam pela biblioteca à noite e se alimentam dos insetos que poderiam destruir todo esse tesouro”.

Na verdade – e isso aqui interessa muito a nós –, o tal dom João V, como registram os autores de “A biblioteca: uma história mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce (fotografias), “tinha recursos para construções de luxo graças às enormes reservas de ouro encontradas no Brasil. (…) O resultado foi uma biblioteca barroca de opulência extraordinária, coberta por dentro com folhas de ouro e decorada com caras pinturas, trabalhos em gesso e esculturas”.

E por falar em “ouro do Brasil”, também foi ele (falo do vil metal, por favor) o “responsável”, ao menos em parte, por outra maravilhosa casa de livros portuguesa (com certeza?), a “Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra”, sobre a qual, por falta de espaço hoje aqui, conversaremos na semana que vem.

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