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Uma longa história de violência e dor

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MEDO - A vítima sofre por não saber como lidar com o assédio.

Certa noite, Geolipia teve um pesadelo. Viu-se cair por um longo precipício, indo parar num lamaçal, onde ficava presa. Junto com ela, seu filho, ainda criança. Assim como o senhor Kurtz – personagem de “O coração das Trevas”, (Joseph Conrad) – Geolipia viu seu horror de perto e, naquela noite, despertar não foi suficiente para afastá-lo. Mesmo de olhos abertos, o sofrimento continuou. E era pior: ela não sabia o porquê nem como sair dessa situação.

O caminho para essa resposta só começou a surgir algum tempo depois, quando aquele pesadelo tornou-se tão intenso e cotidiano que quase a destruiu. Quase. A salvação – após muita dor – veio com a informação. Geolipia foi vítima de assédio moral, uma violência cotidiana e atual que há muito faz vítimas. Hoje, Geolipia Jacinto da Silva, 51 anos, ainda sofre um pouco, mas agora é diferente: ela conta sua história e trabalha para ajudar pessoas a saírem daquele mesmo lamaçal que por sete anos lhe retirou a paz.

Essa história de pesadelo começou com um sonho. O sonho de ser bancária. “Ninguém quer ser bancária. Eu queria ser bancária. Achava o máximo”. Em 1980, Geolipia realizou esse desejo. Dez anos depois, o abismo surgiu. Promovida à caixa, em 1990, ela começou a sentir dores no corpo. Como qualquer pessoa, ela procurou médicos na tentativa de solucionar seu problema, mas não conseguiu resolver a questão. No banco, a pressão pela produção, pelo cumprimento das metas, somou-se ao sofrimento físico.

As declarações dela, hoje em dia, são incomparáveis em transmitir todo o processo de assédio moral pelo qual passou e tantos outros passaram/passam/passarão. “A minha tragédia no Banco do Brasil foi ser caixa. Eu não tinha agilidade para ser exímia digitadora. Eu tinha meta ‘x’ e o cara do meu lado tinha ‘x’ e ‘y’. Eu não conseguia atingir a meta dele e só fui adoecendo. Passei a viver um estresse violento. Fui para Goiânia (em 1992) porque não agüentava mais o estresse em Natal”.

Em 1993, a busca por tratamentos continuou. Ao invés de cura, a ex-bancária só viu a intensificação das dores. E naquela época, o sofrimento começou a ir além do físico. “Eu ia para médicos e não conseguia resolver o problema. Passei a ser vista como uma pessoa problemática. Os meus colegas passaram a me olhar de uma forma diferente. Quando eu chegava tinha de pedir para o meu colega subir com o meu baú (caixa onde fica o dinheiro). Então eu não conseguia pegar e todo dia era uma chacota por isso”.

E então veio a culpa. “Às vezes eu atrasava e aí vinham os comentários: ‘Ei, você é uma tartaruga’. Tudo isso era assédio moral e eu não percebia. Cada vez que eu cometia um erro ou atrasava, eu dizia para mim mesmo: ‘amanhã tenho de melhorar’. Eu ia para casa arrasada. Com a cobrança, a crítica indireta e a minha queda de produtividade. E eu não conseguia reagir nem verbalizar isso. Porque verbalizar significava assumir a minha queda de produtividade”.

E o desespero. “Eu via que precisava de ajuda. Eu queria ajuda dos meus colegas. Eu não queria parar de trabalhar porque o Banco era a minha realização. Eu queria alcançar dentro do Banco tudo que eu almejava. Em 1995 pedi para sair do caixa. Eu fazia tratamentos alternativos. Eu engessava o braço, talas e ia trabalhar com tala mas tirava para não caracterizar. Entrei em depressão. Eu era um risco e ninguém percebeu isso. Em 1995 era visível a minha destruição”. E ficou pior…

Pesadelo se torna insuportável

Em 1995, Geolipia resolveu intensificar a luta para se ver livre das dores que sentia e que todos achavam ser apenas fraqueza, invenção da bancária. Para isso ela procurou o chefe médico do Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (Cassis), em Goiânia. Foi pedir ajuda e contou ao médico todos os seus problemas, sobre as dores no braço – causadas por Lesão por esforço repetitivo (LER). O que ouviu lhe fez sentir vontade de morrer.

“Após eu contar tudo, o médico me disse: ‘É impressionante como essa doença é característica de mulher, baixinha e nervosa’”. Ela então insistiu: “Doutor, eu preciso de ajuda. Eu quero descobrir o que tenho”. O médico olhou e (apontando para fichas médicas em cima da mesa) respondeu: “Você tem que ir a um psiquiatra. E eu não tenho nada a fazer por você. E você me dá licença que eu tenho todos esses prontuários para olhar e não posso mais perder tempo com você”.

“Eu saí dali me sentindo nada. Eu acreditava no meu potencial. Eu estava buscando uma oportunidade para exercer minha cidadania. E ali morreu minha esperança. Mas dali começou a minha reação”, conta emocionada. A partir daquele momento, Geolipia – como ela mesma descreve – tentou fazer ainda mais para salvar-se. Ligou para Brasília, para a central da Cassis, onde finalmente um médico mais preparado lhe deu atenção.

Antes de recuperar-se, ela ainda teve de enfrentar outra situação que lhe causou muito sofrimento: descobriu que para o banco pelo qual pensava ter feito tanto, não passava de um problema que precisava ser eliminado. Quando conta como foi dispensada da agência na qual trabalhava em Goiânia, ela também chora. “Era muito triste perder todo o referencial de trabalho, minha dignidade.  Aí foi que eu vi o que eu valia: eu não valia nada para o Banco”.

Em 25 de setembro de 1997, o caso de Geolipia chegou ao fim. Ela saiu do Banco do Brasil. Estava – como disse um gerente certa vez – “bichada”. “No dia que me aposentei, chorei. Porque foi o fim de um sonho”. Com esse fim, pelo menos, o pesadelo também começou a desfazer-se. Nos anos seguintes ela conseguiu recompor-se.

“Hoje eu sei o que é assédio moral”

Depois que se descobriu vítima de assédio moral, o que era medo, horror, tornou-se revolta. Mas não uma revolta dessas rancorosas. Geolipia hoje usa o que sua história lhe ensinou para ajudar outras pessoas vítimas de assédio moral e outras violências existentes na rotina do trabalho. Quem busca ajuda, pode encontrá-la na avenida Prudente de Morais, na sede do Sindicato dos Petroleiros, onde coordena o Centro Integrado de Prevenção a Doenças relacionadas ao Trabalho (Previdort/RN).

Foi lá que terça-feira passada ela concedeu uma entrevista, cujas declarações precisavam ser reproduzidas na integra para mostrar o quanto o assédio moral é violento. Assim como sabe as dores desse mal, hoje ela também sabe o fio que se deve segurar para sair desse labirinto. “Informação. Informação é essencial. Está em primeiro lugar”, diz, referindo-se à necessidade da vítima de assédio saber que sofre essa violência. Em segundo lugar, a ex-bancária aconselha às vítimas duas ações: “não se deixar massacrar nem ter medo de denunciar o assediador”.

Segundo ela, só assim há saída para o problema. A denúncia, informa, funciona melhor se for composta de registros das agressões. Elas podem ser feitas através de anotações ou com a ajuda de testemunhas. Outro aspecto importante e que diz respeito a vítimas ou companheiros de trabalho dessas é evitar a cumplicidade com o agressor. “Hoje eu sei o que é assédio moral. O assédio moral é uma história de dor”.

E essa dor passa? Geolipia conta que ainda hoje sente as dores da LER, mas esta é tratada por medicamentos. A outra, a que foi causada pelo pesadelo, ainda está presente mas permanece sendo expurgada. “Hoje eu vivo para a sociedade”, comemora, informando que conseguiu livrar-se do processo destrutivo no qual um dia caiu e ficou presa. Seu pesadelo pessoal ainda manda lembranças, mas ficou para trás.

Uma violência atual e cotidiana

Nem todo grito ou agressão dentro do trabalho (ou fora dele) é assédio moral. Quem lida bastante com esse conceito é a chefe do Núcleo Pró-dignidade, da Delegacia Regional do Trabalho (DRT), Maria de Fátima Alencar Fernandes D’Assunção. O núcleo atua especificamente no combate à discriminação no trabalho. Ela explica primeiro que assédio moral é todo “abuso de autoridade que tem por objetivo ou efeito atentar contra a dignidade e criar condições humilhantes”.

Quando o assédio moral ocorre no trabalho, seu conceito se torna mais específico: “Qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, atitude) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho”. Segundo ela, apesar do conceito ser bem específico ainda há muita confusão. “Há muito tabu em torno de assédio moral. E nem tudo é assédio moral”, diz.

A chefe do Pró-dignidade esclarece que o assédio moral é uma violência que pode ocorrer em qualquer ambiente, basta que alguém queira excluir outro de determinado agrupamento. No trabalho – observa – esse processo ganha proporções gigantescas porque “a pessoa ao ser excluída é também levada ao empobrecimento, pois perde sua renda”. “Ela é empobrecida e seus dependentes vão sentir os reflexos disso”, comenta.

Maria de Fátima Fernandes observa também que as maiores vítimas do assédio moral são, em geral, mulheres, homossexuais, negros, portadores de HIV entre outros. Daí, a conclusão de que na maior parte dos casos o assédio tem raízes discriminatórias. Outra característica dos assediados é que em grande parte dos casos as vítimas são bons profissionais. “As pessoas inteligentes incomodam. Elas não se adequam a regras de rotina, a regras pouco inteligentes, regras que preferem o lucro à saúde”.

E acrescenta: “os assediados em geral são brilhantes. São desafiadores. Nem sempre a chefia sabe entender isso. Nem toda chefia sabe entender um subalterno inteligente como um aliado. Pelo contrário, é mais comum ver como um adversário”. Outra característica que define o assédio moral é que ele não é um conflito. “O conflito envolve uma relação simétrica. No assédio moral, não. Só há a submissão surda e dolorosa. Você se sente impotente diante da perversidade do assediador. Há pessoas que chegam aqui destruídas”.

A questão é tão séria, destaca, que segundo dados mundiais, 10% a 15% dos suicídios são cometidos por pessoas em depressão vítimas de assédio moral. “Uma pessoa vítima de assédio é como um prédio sendo bombardeado. Porque a pessoa é destruída. E hoje a gente não pode deixar de associar a idéia de violência à idéia de assédio moral. É uma forma atual de violência. É uma violência psíquica. O assédio destrói o que há de mais nobre no ser humano, sua dignidade”.

Nem tudo é visto como assédio moral

A chefe do Pró-dignidade, Maria de Fátima Alencar Fernandes, explica ainda que o assédio tem diferentes formas, sendo a que envolve chefe e subalterno a mais comum. Há também o assédio horizontal, no qual o assédio é realizado por um companheiro de profissão. Ela explica ainda que há uma série de atitudes que da mesma forma são abusos mas não podem ser considerados assédio moral.

Entre estes, ela destaca que não é assédio moral o estresse causado pelas más condições de trabalho e sobrecarga; a pressão o trabalho; a falta de intencionalidade maldosa; determinada atitude gerada com o fim de aumentar os lucros ou a produtividade; e quando um grupo é afetado pelas situações. Segundo Maria de Fátima Fernandes o melhor sinal para diferenciar o que é e o que não é assédio moral reside na constância da prática dessa violência e na sua pontualidade com relação à vítima.

Além de dar as indicações para diferenciar um tipo de violência das outras, a chefe do Pró-dignidade também informa como fazer para começar a se livrar da situação. De acordo com ela, o primeiro passo é perder o medo de denunciar o agressor. Maria de Fátima Fernandes explica que essa é inclusive a maior dificuldade em combater o assédio: o medo. Após perder o medo a vítima deve preocupar-se em tentar registrar as agressões.

Hoje em dia, graças ao avanço da compreensão das DRTs, casos de assédio moral podem ser reparados. Em casos de demissão, como geralmente terminam o processo, quando a denúncia é feita e fica claro o quadro de assédio, a demissão é revogada e a vítima volta à empresa sob o monitoramento da DRT. Caso o funcionário não deseje mais voltar de forma alguma à empresa onde sofreu maus-tratos, todos os seus direitos trabalhistas são assegurados .

Tudo isso só pode ser feito se a pessoa se revoltar diante da sua situação e trabalhar para libertar-se do assédio. Quanto mais cedo a vítima toma consciência, melhor para acabar com a violência porque no processo de assédio o funcionário acaba se tornando tudo aquilo que dizem dele.

Assédio moral

O que é? Exposição de trabalhador ou trabalhadora a situações humilhantes, constrangedoras, sendo mais comuns em relações hierárquicas e autoritárias. Caracteriza-se pela individualidade dos atos e pela sua repetição.

Como acontece? A vítima é apartada do grupo e passa a ser hostilizada diante de todos.

Aonde leva? O assédio compromete a saúde física e mental da vítima e pode mesmo evoluir para incapacidade de trabalho, desemprego e morte.

Os alvos preferenciais? Mulheres, negros, homossexuais, portadores de HIV, portadores de necessidades especiais.

Como identificar? Ameaças envolvendo o desemprego; desmoralizações públicas; promoções de colegas com menos experiência ou recém-chegados à empresa; e sugestões para pedido de demissão são alguns sinais de assédio.

O que fazer? Registrar o que está acontecendo da melhor maneira possível e denunciar à Delegacia Regional do Trabalho. Para aqueles que não são vítimas mas presenciam assédio moral, o caminho para combatê-lo é a solidariedade à vítima e repreensão ao agressor.

Saber mais?

www.assediomoral.org
www.sindbancariospe.com/assediomoral.html

Fonte: Cartilha “Assédio Moral é ilegal e imoral”, produzida pelo Sindicato dos Bancários de Pernambuco.

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