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Utopia para a sociedade do livro

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Nelson Patriota [ escritor ]

A temporada de lançamentos literários e assemelhados está chegando ao fim, à medida que nos aproximamos de meados deste dezembro tão livresco, digamos, quanto seus predecessores outubro e novembro. Pouco a pouco, firma-se uma tradição, ou melhor, a inventamos e consolidamos, para lembrar a lição de Eric Hobsbawn, nessa área.

A escolha dos últimos meses do ano para fins de tradição não se dá, todavia, por um capricho ou uma futilidade, vez que se apoia numa ideia, aliás defensável, de que esse é um período de prestação ou de acerto de contas que fazemos com nossos projetos mais pessoais. Herança de atitudes inspiradas em propósitos análogos. Por que não dizer, mais viscerais e íntimos. Tempo também de descarte – avizinha-se um novo ano – para dar lugar a algo de novo que porventura nos chegue.

Não se pode esquecer que os livros têm uma aura que parece tentar um número cada vez maior de pessoas, o que sugere que a sociedade humana poderá vir a tornar-se, um dia, uma sociedade de leitores-autores, haja vista que escrever parece, cada vez mais, uma consequência natural do próprio ato da leitura, se atentarmos para o fato de que a leitura está longe de ser uma ação passiva; a noção de leitura ativa ou participativa – individualmente ou em grupo – já comporta o gérmen da escritura. 

A própria palavra leitura abriga, em sua interface, a leitura do mundo, que engaja necessariamente cada leitura em separado, considerando que cada vida é em potencial um livro, ou melhor, uma história, que poderá vir a tornar-se um livro. O simbolista Mallarmé já teve um vislumbre dessa possibilidade, quando disse que “tudo existe para terminar num livro”. Afinal, quem não conhece uma boa história?

A experiência nos diz que qualquer história, qualquer episódio humano, é suscetível de interpretação escritória. Pode-se escrever tão facilmente contra a demolição de um estádio esportivo, como o fez o escritor Carlos Roberto de Miranda Gomes no livro “O Menino do Poema de Concreto”, lançado na quarta-feira passada, como sobre uma coletânea de contos eróticos, como o fez José Correia Torres Neto, em “Entre Dedos” (edição do autor, saída recentemente). Ou ainda sobre a vivência entre os livros, como faz Manoel Onofre Júnior em “A Servidão Diária” (CJA Edições, 2014).

E quem porventura duvidar que um amor de juventude não pode dar uma boa história, precisa ler “Brigitte, meu primeiro amor” (8 Editora, 2014), de Iderval Júnior, aliás um estreante cheio de projetos ambiciosos na seara das letras. Com igual superlativo entusiasmo aconteceu a estreia de Ana de Sales com seu “O Verso da Trama” (Sarau das Letras, 2014), título enigmático que só se elucida com a leitura de suas 510 páginas!

Toda essa efervescência – conjunção dos diversos atores envolvidos com a escritura, produção e consumo do livro – acontece na antessala das redes sociais, onde se tem como certo o fim do livro em papel.  Mas há possibilidades a se explorar antes desse desfecho.

Imaginemos, por exemplo, que a temporada de lançamentos se expanda de tal forma que se torne um fato trivial durante todos os meses dos anos vindouros. Nessa temporalidade utópica, a literatura deixaria de ser uma especialidade de certa categoria de seres – os escritores – para se tornar uma prática humana rotineira. Todos escreveriam simplesmente porque teriam algo a contar, quando menos sua própria história, que comporia o grande livro da história humana individualizada.

Nesse livro, cada pessoa teria registrada do próprio punho sua história de vida, reescrita conforme sua índole: veraz, para os realistas; fabulada, para os demais. Para facilitar a sua catalogação, todas essas obras seriam conhecidas como literatura da vida. Quanto aos livros que hoje denominamos de ficção, não passariam de variações desse grande livro.

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