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Vale do Lírio não é mais modelo em assentamento

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MÁRCIO NASCIMENTO - Ele e outros assentados precisaram encontrar atividades paralelas para sobreviver

O assentado Erivaldo André de Souza mostra aborrecido a última correspondência de cobrança da dívida que recebeu há cerca de dois meses. Ele faz parte das 62 famílias assentadas do Vale do Lírio, município de São José do Mipibu e está à frente da associação do assentamento. A cobrança é da dívida contraída pelo grupo nos últimos sete anos, para a produção de mamão. O Vale do Lírio já foi considerado assentamento modelo pelo Ministério da Agricultura, já recebeu prêmios pela alavancagem econômica. Hoje o assentamento tem uma dívida de R$ 387mil com o Banco do Nordeste, empresas de produtos agropecuários e agiotas.

 O orgulho de ser um assentamento modelo, produzir frutas para exportação e receber prêmios de reconhecimento, foi por água abaixo quando há dois anos o Vale do Lírio se deparou com uma realidade cruel. Com 45 hectares de mamoeiro, o assentamento teve a rescisão do contrato com a empresa Caliman, que comprava a fruta e exportava para vários países. A justificativa, segundo os assentados, é que a fruta não estava com o mesmo padrão. Depois de cinco anos de uma parceira produtiva para o assentamento, a empresa cancelou o contrato, deixando 42 famílias “na mão”.

De acordo com Erivaldo André, as famílias não passam por dificuldades atualmente porque guardaram dinheiro e investiram o que ganharam em eletrodomésticos, carros e motos. “Na época em que as coisas estavam melhores muita gente guardou dinheiro e comprou o que pôde. Eu mesmo comprei uma kombi, que uso hoje para prestar serviço fazendo transporte escolar”. A esposa trabalha como costureira.

Como o presidente da associação, outros assentados estão em uma situação complicada. Divino Sebastião de Oliveira, 32 anos, é um dos que cedeu seu lote, de quatro hectares, para o plantio do mamão. “Participei do projeto do mamão falido. Nós acreditávamos”. Ele leva a equipe da TRIBUNA DO NORTE em casa e mostra o que conseguiu comprar na época que a renda mensal chegava a R$1 mil, ou mais. Hoje ele sobrevive fazendo frete (com o carro que comprou na época) e do salário da esposa, que é professora do município de Monte Alegre (com salário de R$380 mensal). “Hoje não dá para viver da roça, o que plantamos vende muito barato”.

Nos “tempos bons” ele comprou geladeira, televisão, fogão, aparelho de DVD, carro e reformou a casa. Assim como Divino, muitos outros melhoraram o padrão de vida. E assim como ele, ficaram sem chão quando o mamão não garantia mais a renda e as dívidas começaram a pesar. O problema foi que no ano 2000, quando assinaram contrato com a Caliman, os assentados tomaram um empréstimo de R$400 mil, através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), junto ao Banco do Nordeste (BNB).

Depois do primeiro, o grupo fez empréstimo junto ao BNB outras três vezes, em 2001, 2004 e 2006, respectivamente nos valores de R$136 mil, R$80 mil e R$118 mil. “Isso foi para tentar contornar a situação e pagar o que devíamos, mas nos endividamos ainda mais”. Atualmente, além da dívida de R$298 mil (o resto eles conseguiram pagar) com o BNB, o Vale do Lírio deve R$20 mil à JMZ Produtos Agropecuários, R$32 mil à Agro Matos e R$35 mil à um agiota, além de R$2.400 à um mercado de Parnamirim.

“Mas mesmo nos tempos melhores, não tínhamos acesso a todo o dinheiro. A maior parte já era para pagar a dívida, mesmo assim dava para viver melhor”, afirma Divino Sebastião. Ele e Erivaldo André contam que conseguiram negociar a dívida com a JMZ Produtos Agropecuários. O assentamento vai dar em troca da dívida, uma “pipa” (pulverizador de agrotóxicos), estimada no valor de R$18 mil (uma nova vale em torno de R$30 mil). “Foi o jeito que arrumamos de diminuir o que devemos. Também estamos vendendo um trator da associação para conseguir dinheiro”, diz Erivaldo André. 

A situação das famílias do Vale do Lírio não chega a ser caótica, porque a maioria das pessoas trabalha em atividades paralelas ao campo, além de cultivar a roça (mandioca, feijão, batata, milho, banana, mamão, melancia). Mas as condições de vida dos assentados caíram muito nos últimos dois anos. “O pior é que não temos como pagar, já estamos com o nome no SPC (Serviço de Proteção ao Crédito). Nós achávamos que o contrato com a Caliman e a produção de mamão iriam durar para sempre. Chegamos a plantar 45 hectares”, lamenta Divino Sebastião. Hoje o assentamento tem 15 hectares de mamoeiros.

Comunidade sem saúde e sem estrutura

Quando a equipe da TN chegou ao assentamento Vale do Lírio, a principal via, rua Presidente Manuel Farias, denunciava o dia de trabalho.  Apenas poucas pessoas transitando pela rua de barro, a maioria estava no campo ou nos empregos nas cidades. O assentamento completa dez anos em maio de 2008. Com 62 lotes/ casas divididas para o mesmo número de famílias, o assentamento recebeu energia elétrica e água encanada logo nos primeiros meses da fundação. A infra-estrutura parou por aí. Quase dez anos depois da fundação, o Vale do Lírio continua com ruas de barro, sem escola, posto policial e unidade de saúde.

A educação das crianças está garantida através do transporte escolar, enviado pela prefeitura de São José do Mipibu. Todos os estudantes do assentamento freqüentam escolas no centro do município e em um distrito mais próximo, o Mendes. A prefeitura arrumou um jeito mais prático e contratou o serviço do assentado, presidente da associação  e proprietário de uma kombi, Erivaldo André. “Eu levo e pego eles na escola”.

O assentamento também não dispõe de uma unidade de saúde. O posto médico mais próximo está no município de Mendes, a seis quilômetros da comunidade. “A cada 15 dias vem um médico da família atender nas casas, mas em caso de emergência, só levando para São José do Mipibu”, conta Erivaldo. Também não há policiamento. De acordo com os moradores, é difícil haver problema de insegurança, mas recentemente duas, das três igrejas foram arrombadas e tiveram cadeiras de plástico e equipamentos de som roubados.  “Achamos que é gente de fora do assentamento”, conta Erivaldo André. 

BNB informa que aceita negociar com assentados

O Banco do Nordeste (BNB) informou que não pode confirmar o valor da dívida do assentamento Vale do Lírio, mas que a instituição está à disposição para renegociar a dívida. De acordo com a assessoria de comunicação do BNB, o assentamento não se enquadra em nenhum critério das leis vigentes, que permitem a renegociação, no caso de pequenos produtores rurais.

Mas apesar disso, o Vale do Lírio está incluído no programa de administração de agentes de desenvolvimento. O BNB encaminha agentes de desenvolvimento para acompanhar as comunidades que recebem o crédito do banco, a fim de verificar quais as necessidades. Segundo o BNB, desde maio a instituição está ciente da situação do grupo e já vêm estudando a melhor maneira de renegociar a dívida.

Pela assessoria de comunicação, semana passada o Banco apresentou ao grupo uma proposta para a renegociação. Mas a proposta não foi assinada porque nem todas as famílias concordaram. Como se trata de uma dívida coletiva, a negociação só pode ser feita com a aceitação de todos os envolvidos. De acordo com a assessoria isso impossibilita o processo, mas o BNB continua à disposição para que ambas as partes cheguem a um acordo.

O superintendente regional do Incra, Paulo Sidney Gomes, explicou que o assentamento é um dos poucos do Estado que conseguiu atingir o padrão de produtividade como no período do mamão. Segundo ele, o Incra sempre esteve presente, tanto no período de implantação do assentamento, quanto no momento em que o grupo fechou contrato com a Caliman. “Fizemos todo o acompanhamento durante o período do contrato. Mas no próprio contrato ficava claro que a assistência técnica seria feita pela empresa. Mesmo assim, o Incra sempre esteve presente”.

Paulo Sidney também falou que até o final do ano será liberado um crédito de R$5 mil para cada família, para a reforma das casas. “Já estamos fazendo isso em outros assentamentos do Estado, até agora mil casas foram reformadas. Escolhemos as primeiras por necessidade”. De acordo com ele, as casas do Vale do Lírio receberão o crédito em breve. A TN procurou o gerente geral da Caliman, José Antônio, mas não conseguiu localizá-lo para maiores esclarecimentos.

Alguns lotes foram vendidos

Depoimentos de alguns moradores do assentamento Vale do lírio dão conta de que alguns lotes ou parte deles foram negociados. Os moradores disseram que alguns assentados negociaram os lotes e ficaram com a casa, ou venderam parte da terra.

Existe até um lote que está improdutivo. “Esse lote foi vendido para uma pessoa que parece que nem é do Estado. Está improdutivo, só o mato mesmo. A casa tem um morador, uma espécie de caseiro”, afirma o assentado Paulo Martins. De acordo com ele, lotes que valem R$30 mil, são vendidos à R$15 mil.

O superintendente regional do Incra, Paulo Sidney Gomes, esclareceu que está ciente da situação. “Esse é um problema que temos em várias partes do Estado. Estamos atuando em uma parte de cada vez”. De acordo com ele, será feito um recadastramento das famílias do Vale do Lírio, nos moldes dos demais assentamentos. “Aí sim vamos liberar o crédito para reforma, somente para quem estiver de acordo com o programa”.

 

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