terça-feira, 23 de abril, 2024
31.1 C
Natal
terça-feira, 23 de abril, 2024

Vanguardas influenciaram o poema

- Publicidade -

O conceito do poema-processo relacionado à arte inacabada e constantemente em mutação pode até ser a base do movimento iniciado no final dos anos 60, mas para efeitos de registro,  a delimitação do começo e do fim foi fundamental para o pesquisador Dácio Galvão, que defendeu sua tese de mestrado em literatura comparada na UFRN sobre o poema-processo e a inserção da proposta num movimento maior, que envolvia as vanguardas históricas da cultura brasileira e européia na segunda metade do século 20. O resultado do trabalho virou o livro “Da Poesia ao poema”, publicado em 2004 com o selo do projeto Nação Potiguar.

Seduzido pelo poema concreto defendido na corrente dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e também pela relação que esse movimento tinha com o tropicalismo, Galvão quis entender o poema processo distante da imagem fechada que, aparentemente, a proposta sugeria. “Eu era um militante atraído pelo concretismo, principalmente por essa corrente dos irmãos Campos, e quis me aprofundar no poema-processo até pela importância que o tema teve para Natal, já que o movimento foi lançado simultaneamente aqui e no Rio de Janeiro. Só que eu precisava delimitar um tempo fazer essa análise e usei as publicações dos próprios manifestos que marcam o início (Proposição-67) e o fim oficial (Parada: opção tática) do poema processo, ou seja, de 1967 até 1972”, disse.

Numa das conclusões do trabalho, o pesquisador afirma que apesar dos poetas defenderem o poema processo como anti-literário, a base do movimento é a própria literatura. “Se você pegar os próprios textos dos manifestos publicados pelos poetas, vai ver que são textos literários. O pessoal que usava bastante da arte visual nos poemas, fazia aquelas performances, tinham sua base na literatura e eram influenciados, também, por grandes nomes da literatura mundial como Ezra Pound, Bertrand, Paul Valérie… Outra coisa: a trajetória do movimento, como a estruturação da equipe, o lançamento do manifesto em periódicos e as exposições adquirindo dimensão nacional, suscita a dimensão do que ocorreu e das estratégias de convencimento que também eram bastante comuns às vanguardas artísticas. Fora da literatura você vê influências no poema processo do Bauhaus (escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha) e das vanguardas russas que surgiram no início do século”, disse.    

Sobre a participação do Estado, ele cita a participação de Moacy Cirne como um dos “cérebros” do movimento. “O pilar do poema processo era, sem dúvida, formado pelo Wlademir Dias-Pino, Alvaro de Sá e Moacy Cirne. Esse foi o primeiro movimento literário em  que os poetas potiguares mostraram força. E último, até porque depois do poema processo não houve mais nenhum movimento de vanguarda cultural do país”, disse ele que, no livro, não admite uma segunda geração de poetas processos que não sejam do grupo inicial formado pela turma que participou do movimento entre 1967 e 1972. “Você pode até fazer um poema processo hoje, como está ocorrendo com os poemas barrocos. Mas daí falar de uma nova geração é uma distância grande”, disse.       

Poeta hoje é de carne e osso

Quem não conhece a fundo a história do Fluminense poderia imaginar que a camisa cinza que Moacy Cirne usava quarta-feira passada, antes do jogo do clube carioca com o América, no Frasqueirão, pela Copa do Brasil, era mais um de seus poemas processos. “Essa foi a primeira camisa do Fluminense. Tem história”, explicou. 
Pilar potiguar do último movimento de vanguarda literária do país, que contou com a participação cerebral de um grupo de poetas de Natal, ele conversou com a TRIBUNA DO NORTE antes de se juntar a Falves Silva e J Medeiros num debate sobre os 40 anos do Poema Processo na Feira de Sebos de Natal, realizada esta semana na Cidade Alta.
Aos 64 anos e cheio de projetos na área literária, Moacy Cirne se diz feliz com as homenagens e revela que uma das contribuições do poema processo à cultura do país foi desmistificar a figura do poeta. “Antes o poeta era sagrado, hoje é de carne e osso”, disse.    

TN: Quando o poema processo foi criado, você estava no Rio de Janeiro. O que fazia longe de Natal?
MC: O problema é que naquela época eu queria uma coisa que Natal não podia me dar porque ainda era uma cidade muito pequena, uma província. Se fosse hoje eu não precisaria sair, mas eu precisava aprofundar meus estudos de semiótica, queria manter contatos com algumas pessoas que tinham interesse na mesma área que eu. Tanto que quando cheguei me matriculei na Escola Superior de Desenho Industrial e fui direto procurar esse povo. Em um mês já estava amigo de Décio Pignatari, Wladimir Dias-Pino, Álvaro de Sá…

TN: E aí já começaram as reuniões com os poetas, que deram no poema processo…  MC: Em Natal, o nosso grupo que era formado por mim, o Nei Leandro de Castro, Jarbas Martins, Anchieta Fernandes, o Daylor Varela já discutia uma nova alternativa cultural e levei isso para Rio, o que ajudou também essa aproximação com os poetas de lá. Tanto que em dois meses morando lá no Rio já publicava artigos culturais no jornal Correio da Manhã.

TN: E como surgiu a idéia simultânea de criar um novo movimento dentro da literatura brasileira? 
 MC: Trocávamos muitas cartas, porque não tinha nem internet. De telefone era muito difícil porque não tinha DDD e você tinha que ligar para a telefonista, que mandava chamar a pessoa e, enfim, dava muito trabalho. Mas o fato é que a gente procurava uma alternativa, um poema novo e político também. Principalmente porque o momento era outro, diferente da época em que nasceu o poema concreto. Existia aquele clima de tensão por conta da ditadura. E eles (os concretistas) quiseram desmerecer a gente dizendo que éramos uma nova corrente do concretismo, o que não é verdade porque a diferença está no fato de que a poesia concreta era uma obra acabada, enquanto o poema processo poderia ser recriado sempre desde que mantivessem o crédito inicial do autor. Não existe poema processo acabado, a não ser à título de registro.

TN: A sensação visual que o poema processo provoca nas pessoas é uma das principais características desse movimento. O público entendia essa linguagem?
MC: Você sabe que numa das exposições que a gente fez no Rio de Janeiro apresentamos o poema 1822 do Nei Leandro de Castro e eu ouvi de uns populares que estavam do meu lado, olha que ninguém me contou, eu ouvi a seguinte frase com essas palavras que eu vou dizer: `puxa, isso aí diz mais coisa que muito livro de 500 páginas´. Então daí a gente tira o quanto aqueles poemas diziam para as pessoas. Os recursos gráficos uma leitura semântica da obra mesmo aparentemente sendo abstrato 

TN: Natal realizou a exposição de lançamento do poema processo um dia antes que o Rio de Janeiro. Isso garante algum pioneirismo à cidade em relação ao movimento?
MC: Não, não… isso foi mais uma questão de data mesmo. Parece que o pessoal fez a exposição aqui no domingo e a gente fez a do Rio na segunda-feira.  Mas as discussões foram juntas. Eu, por acaso, fui o responsável por essa ponte entre Natal e o Rio. Digo por acaso porque poderia ser qualquer pessoa, foi um motivo circunstancial já que eu morava no Rio. Mas isso (Natal ser pioneira) é secundário. 

TN: O movimento foi oficializado com o manifesto, mas ganhou mais visibilidade quando houve a famosa rasgação de livros dos poetas famosos da época, entre eles Carlos Drumond de Andrade? O ato atingiu o objetivo do grupo?
MC: Queríamos chamar a atenção da mídia. Isso foi na segunda exposição no Rio, idéia do Jomard Muniz de Brito (pernambucano) que não participava do movimento. Ele chegou um dia e disse: `porque vocês não queimam os livros dos poetas´ e tal. Aí achamos que queimar era muito pesado porque remetia à idéia do fascismo de Hitler.  Mas rasgar era outra coisa. Naquela época, o Carlos Drumond de Andrade era um peso para todo mundo porque você só conseguia lançar um livro e tivesse o consentimento dele. E o Drumond sabia mexer os pauzinhos dele para salvar a pele de um amigo (risos). Só que foi uma coisa simbólica. A gente pegava um livro qualquer e gritava `Carlos Drumond de Andrade!´ mas ninguém chegou a fazer isso com os livros dele mesmo. Teve um poeta que pegou um livro e gritou o próprio nome como se tivesse rasgando o livro dele. Agora, isso deu um destaque ao movimento impressionante. A mídia toda cobriu e alavancou o movimento.

TN: De que forma?
Conseguimos uma visibilidade tão grande que crescemos muito no interior. Não tanto no Nordeste, mas chegamos até àquelas cidades do interior de Minas Gerais. Para você ter uma idéia, fundaram um núcleo de poetas processo em Pirapora com oito poetas! Agora imagine uma cidade com 25 mil ter um grupo com oito pessoas difundindo o poema processo! Fizeram uma passeata uma vez em Pirapora para comemorar o dia da poesia e desfilei numa ala dedicada ao poema processo.    

TN: E a mídia aceitava o  poema processo como ele era, com todas aquelas performances?
MC: Olha, teve uma vez, no auge do movimento, que recebemos um convite da produção do Chacrinha. E o Chacrinha você sabe, é tão popular como o Faustão de hoje, mas é muito mais inteligente. Aí fizemos uma reunião para decidir se iríamos ou não, já que éramos bastante críticos em relação aos meios de comunicação de massa. E chegamos à conclusão que a gente só iria ao programa dele se pudéssemos levar um poema surpresa, que ninguém podia saber. Ligamos para a produção, dissemos do poema e eles ficaram com medo e desistiram.

TN: E como era o poema?
MC: (Risos). Já tínhamos até decidido. A gente iria pegar um galão de cola instantânea, envolver o Chacrinha com uma fita e jogá-lo numa cadeira para que ele levantasse pregado ou caísse no chão. 

TN: A rasgação dos livros não ocorreu aqui em Natal, dizem, que por conta da pressão e da força do nome de Câmara Cascudo…
MC: Assim como Drumond era um peso no Rio de Janeiro, Cascudo também era aqui em Natal. Eu não estava aqui na época, mas não havia tanto sentido rasgar os livros aqui porque a idéia era chamar a atenção da mídia em nível nacional e como conseguimos isso lá, o ato perdia o sentido

TN: O poema processo nasceu durante a ditadura militar. O regime teve algum tipo de influência no fim do movimento?
MC: Os militares ficaram de olho na gente no Rio. Mas que eu saiba, prisão e apreensão de material houve numa exposição de Campina Grande onde o (jornalista e poeta) José Nêumane Pinto participou. Na verdade, os militares só encrencavam quando eles não entendiam os poemas.

TN: E você teve problemas?
MC: Descobri que os militares interceptavam minhas correspondências quando fui interrogado pela polícia. Eu me comunicava com um poeta do Uruguai que era tupamaro (ligado ao Exército de Libertação Nacional do Uruguai). Aí o delegado olhou para mim e perguntou o que era vanguarda latino-americana, que era a organização que o cara pertencia. E tive que dar a minha explicação… (risos)

TN: Mas havia alguns poetas processo engajados em organizações de esquerda…   
MC: No nosso grupo do Rio de Janeiro existiam de 20 a 25 poetas. Desses, acho que 22 eram envolvidos com essas organizações. Eu militei pela Política Operária Marxista Leninista e pelo Partido Operário Comunista. Eu fazia livros de propagandas políticas para a organização e publicava sob o pseudônimo Mário Almino. Um deles “Arte e Política” ficou conhecido e ninguém sabia que era eu.

TN: O poema processo ainda influencia hoje algum segmento artístico?
MC: Acho muito ambíguo, está diluído. Uma coisa importante que o poema processo ajudou a quebrar foi o estigma que o poeta tinha antigamente de ser sagrado. Hoje, as pessoas já encaram o poeta como uma pessoa normal de carne e osso.

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas