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Viagem pela Afonso Pena de terra batida

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Ramon Ribeiro
Repórter

A avenida Afonso Pena é uma das vias mais expressivas da região central de Natal. Com apenas 2km ela cruza dois bairros, Tirol e Petrópolis, e em cada área dessas ela apresenta uma característica específica. No Tirol, sua vocação é de pólo médico-hospitalar, com hospitais, clínicas, laboratório e farmácias instalados na rua. Em Petrópolis, a via se torna reduto de lojas de grife, vestuário, decoração e de espaços gastronômicos – não à toa, foi apelidada de Oscar Freire natalense.

Avenida Afonso Pena é completamente diferente de quando a escritora e jornalista Rejane Cardoso viveu com a família

Avenida Afonso Pena é completamente diferente de quando a escritora e jornalista Rejane Cardoso viveu com a família

A Afonso Pena de hoje é completamente diferente da Afonso Pena de terra batida dos anos 50 e 60, quando a escritora e jornalista Rejane Cardoso viveu com a família. Naquela época nem se imaginava o perfil comercial e de serviços que o local apresenta hoje – embora o grupo social, de famílias abastadas da sociedade natalense, seja semelhante. O que imperava naquelas décadas passadas era o clima residencial, comunitário, em que os vizinhos eram bem próximos uns dos outros, a ponto da criançada crescer de maneira solta na rua.

Em entrevista a equipe da Tribuna do Norte, Rejane lembrou de sua infância e adolescência vivida na avenida. Contou das suas descobertas musicais, das brincadeiras na casa do engenheiro Roberto Freire, da residência elegância europeia do casal Carlos Filgueira e Dona Jacira, das apresentações folclóricas em frente a casa do então prefeito Djalma Maranhão, na esquina com a Jundiaí, além de muitas outras histórias.

A conversa aconteceu na própria Afonso Pensa, na loja Mulher Rendeira, uma boutique feminina que exemplifica em seu interior um pouco da personalidade das antigas casas da avenida. Entretanto, mais do que isso, a lojinha proporcionou uma viagem visual e íntima ao passado de Rejane, já que o ambiente é inspirado no quarto da nossa entrevistada, inclusive com decoração composta por peças originais que pertenceram a casa da família, como um portão e uma escrivaninha.

Embora não more mais na Afonso Pena – Rejane saiu da casa dos pais em 1973 quando casou com o também escritor e jornalista Vicente Serejo – e não tenha mais como visitar a antiga casa da rua – destruída para dar lugar a um estacionamento –, as boas memórias que a escritora tem do lugar, na contramão do que acontece em toda Natal, jamais serão demolidas. Confira o bate papo.

Lado da sombra, lado do sol
Cheguei com cinco meses de idade na avenida. Das minha lembranças mais antigas, lembro que a Afonso Pena já era bastante arborizada na minha fase de criança. A rua sempre teve um estilo, já que as casas foram feitas quase todas na mesma época. O lado mais poderoso, com casas maiores, ficava na sombra. No outro lado, o lado do sol, ficavam as casas mais simples. Era onde ficava a casa de Papai, por exemplo.

A casa de Carlos Filgueira
Em frente a nossa casa tinha a caso de Carlos Filgueira e Dona Jacira. Ele era o cônsul da Espanha. Era uma casa muito elegante. Tinha um toque europeu, com projeto de arquiteto italiano. Na casa tinham várias árvores frutíferas, araçá, siriguela, tamarindo. Seu Carlos parecia ser uma pessoa diferenciada. Uma vez tombou um cajueiro e ele teve todo o cuidado que colocar uma estrutura para reerguê-lo. No quintal tinha uma casa de boneca. Quando as crianças cresceram, o lugar serviu de laboratório de fotografia. Da residência não resta mais nada. O lugar foi completamento foi demolido para dar lugar ao Natal Hospital Center.

A casa de Roberto Freire
A casa de Dr. Roberto Freire era central. [Engenheiro Roberto Freire, cujo nome batiza a via de acesso à Ponta Negra]. Era uma casa com muita animação. Ele e Dona Lúcia tiveram nove filhos, morreram dois, ficaram sete. Éramos muito próximos, quase irmãos. No terreno ao lado Dr. Roberto fez um campinho de futebol. Até as meninas jogavam. No caso eu, Ivone Freire [filha de Roberto e Lúcia] e as outras meninas da rua. Mas eu era a pior de todas, nunca levei jeito.

Os passeios de Eloy de Souza
Eloy de Souza [casado com a avó de Rejane após ela se separar] todo dia ia me visitar às 16h, com seu motorista Chico Marreteiro. Um dia eles foram me levar para o Colégio N. S. de Fátima e como chegamos cedo eles encheram o carro de crianças e foram até Areia Preta pra gente brincar e ver o mar.

A primeira TV da rua
A casa do Doutor Roberto Freire foi a primeira a ter televisão. Juntava tanta gente lá. As vezes parecia cinema. E nesse tempo não tinha TV colorida. Era todo mundo assistindo as imagens em preto e branco. A casa dele era tão central na rua que o sorveteiro, Seu Chimba, batia ponto em frente, debaixo de uma árvore. A meninada vinha correndo com os depósitos para pegar sorvete, que era uma delícia.

Abrigo antiaéreo
Lembro que perto do campinho da casa de Dr. Roberto tinha um cimentado de quatro metros. Era um abrigo antiaéreo, do tempo da guerra. Os meninos mais velhos contaram que já chegaram a abrir e ver como era dentro. Eu nunca vi. Sempre tive curiosidade. Quando a casa foi abaixo, o abrigo foi destruído junto. No lugar foi construído o hospital Papi.

Talher
Para aquela turma toda que cresceu junto, um dos momentos mais tristes foi quando o Dr Roberto saiu da rua para morar na Cidade Alta, numa casa grande, moderna, em frente a Lojas Americanas. Mas uma de suas filhas nunca perdeu o contato com a Afonso Pena. É dela o primeiro self-service de Natal, o Talher. E ali, onde tem o restaurante, antes era uma granja pequena, com algumas vaquinhas. Lembro de ter tomado leite fresco lá.

Vaquinha para calçar a rua
Só naquele tempo para os moradores fazer vaquinha pra pagar o que devia ser serviço público. A avenida nos anos 60 era de terra batida. Em algumas partes, quando chovia, formava uma lagoa, enchia de sapo. A gente se juntou e calçamos a avenida. No período das obras foram feitas grandes escavações e morreram alguns operários soterrados. Foi um negócio pesado. Marcou a gente.

Da Bossa aos Beatles
Descobrimos a Bossa Nova e os Beatles na Afonso Pena. Cláudio Freire tinha uma sensibilidade musical grande. Foi ele que mostrou João Giberto pra gente. Lembro de pedir um violão pra tocar Desafinado e mamãe não detestar a ideia. Ela não aguentava essa música, achava chata. Quando Dr. Roberto e Dona Lúcia saiam, seus filhos botam o som bem alto. A gente ficava dançando na sala. Também assisti bons shows na Afonso Pena, do Chico Buarque, por exemplo, lá no Clube do ABC. Também cheguei a me apresentar lá, tocando violão.

Folclore
Na esquina da rua com a jundiaí morou Djalma Maranhão. No Natal e no Carnaval vinham grupos folclóricos se apresentar em frente da sua casa, porque ele foi um prefeito que valorizou muito a cultura popular. No carnaval, vinha um bloco com os foliões montados em cima de burrinhos. Tudo isso eu acompanhava.

Acontecimentos históricos
Foi da Afonso Pena que acompanhamos o homem chegar a lua. Papai viu Dom Helder Câmara acenar pra ele na esquina. Soubemos do assassinato de John Kennedy. Soubemos da tomada de poder dos militares. Vimos acontecimentos históricos naquela comunidade. Criança ou adolescente, eu fiquei sabendo dessas coisas ao ouvir os mais velhos conversando. E também quando fiquei maior de idade, já na Faculdade de Jornalismo Eloy de Souza, aqui do lado, ou quando quando comprava a nova edição do jornal, que o jornaleiro, Cambraia anunciava com seus gritos guturais, mastigando as palavras.

Oscar Freire papa-jerimum
A Afonso Pena, apesar de ter um charme, está desfigurada. Em Natal não tem uma tradição de preservação da memória, do patrimônio. E a Afonso Pena é uma rua nova. Suas casas, nem todas tinham uma arquitetura marcante e as que tinham não tiveram tempo de se firmar. Lamento o crescimento desordenada da cidade, sem preocupação estética, mas não podemos parar o tempo. As cidades se transformam. Hoje a Afonso Pena é a Oscar Freire de Natal, rua com charme e lojinhas bem decoradas. Mas com toda essa crise que estamos atravessando, vemos que existe uma dificuldade muito grande dos lojistas se manterem. Tem muito comércio fechando, muitos espaços parados. Espero que a situação melhore.

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